Aquiles e o protesto pacífico

Aquiles é, não à toa, um exemplo exemplar de herói que persiste há milênios como mito fundamental. Nosso herói não descansou até encontrar Heitor e matá-lo, para vingar a morte de seu melhor amigo e amante, Pátroclo (aliás, que nome lindo!). Amarrou o corpo de Heitor ao seu carro e o arrastou pelo campo de batalha por nove dias.

É uma atitude sádica, mas esse episódio explica, quase concretamente, a dor do luto de alguém que amamos tanto e nos foi tirado injustamente. Daí a força de sua alegoria e a dramaticidade de sua cena. Mas Aquiles e toda sua história formam um mito.

Hoje, um Aquiles real e comum (cujo nome é Márcio), pai de um rapaz de 25 anos que teve sua vida ceifada pel@ covid-19 (nunca sei se é feminino ou masculino), homenageou seu filho e outros amores de outras famílias enquanto passava pela praia. Em Copacabana, ele viu a manifestação que uma ONG organizou, chamando atenção para as mortes causadas pelo vírus, através de cem cruzes colocadas na areia.

No meio deste protesto, um imbecil destruía e chutava as cem cruzes ali instaladas. Despejava sua fúria irracional sobre o luto de várias famílias e sobre as muitas vidas, que hoje formam a tragédia dos muitos cadáveres somados diariamente.

Nosso Aquiles, o real, viu esse homem mau chutando as cruzes e foi, uma a uma, levantá-las. O homem gritava com ele, mas ele ergueu-as por seu filho. Quem não entende Aquiles, pode passar por outro lugar, desviar das cruzes, ignorar sua atitude e chamá-lo de louco, assim como eu, muito jovem e sem entendimento desse luto evitável vindo da injustiça, o chamei, quando li o episódio da morte de Pátroclo. À época, só fui capaz de admirar o grande amor de Aquiles por Pátroclo e não percebi que o luto é uma ode à vida (que falta), que o amor é a transcendência da vida e que ele é o aspecto imortal, cuja vingança e dor foram tão contundentemente demonstradas por Aquiles.

A Humanidade e a nobreza são valores altos demais para o recalcado, são agressões atrozes para quem não consegue percebê-las, são um tapa na cara que não pode ser ignorado. O escárnio do imbecil foi chutar as cruzes, afinal, quem não tem apego e valoriza a vida, não pode respeitar a morte. Se fosse gente, ainda que fosse burro, poderia ignorar e passar ao lado. Mas o imbecil chutou cada uma das cruzes, pois precisa destruir, pois não há vida e não há amor dentro de si. Este senhor juntou seus nojos à Humanidade e, para existir, grita e ofende nosso Aquiles real, já que não vê como um igual e como um companheiro. Na sua luta vil, nem a morte e nem o luto são limites.

O imbecil não teve nem a dignidade de Heitor, que foi enganado, mas quando se deu conta de que iria para uma batalha perder — e morrer –, aceitou sua sina, porque, de alguma maneira, entendia a Humanidade do luto e da dor profunda e indizível de Aquiles.

Talvez o imbecil tenha mãe e tenha filhos. E, talvez, até diga que ame essas pessoas. Mas há um amor cheio de compaixão em ver o outro como um igual; esse amor que nos faz humanos. Esse imbecil — que precisa agredir Aquiles, porque isso o constitui –, não tem o amor humano necessário à vida, aquele amor que espera a cura do fêmur quebrado dos pré-históricos. Esse imbecil é pré-civilizatório, é dinossauro, é menos do que um trilobite.

E, por fim, Márcio é verdadeiramente, naquele momento, Aquiles, porque se tornou um herói: fez o que o melhor das pessoas deseja realizar e teve nobreza, mesmo carregando sua tragédia e sua dor. Maria Zelia Oliver, no Facebook, contribuiu para essa discussão de herói, do presente texto, acrescentando que “segundo os gregos, o maior crime de um ser humano é a ausência de compaixão. Essa incapacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir essa dor e de respeitá-la. Nesse aspecto, essencial, os textos se tocam. O próprio Aquiles acaba tendo compaixão pelo sofrimento infinito do pai de Heitor, por não poder sepultar o filho e lhe devolve o corpo para as honras fúnebres. Compaixão, não é ‘peninha, dó, sentimento barato’. Compaixão é a prova de que se é gente”.

Acho que Aquiles é herói porque é verdadeiramente gente.

detalhe de I funerali di Patroclo, de Jacques-Louis David

A notícia AQUI.

A crise é de civilidade

Sempre vi os estadunidenses como cidadãos ignorantes. Não porque sejam pessoas burras, mas a sensação da periferia do mundo é de que — a partir do seu consumo — sua indústria cultural pode ser muito interessante ou pode ser muito rasa. E nós sabemos que a imensa maioria do que chega nas massas de lá e na periferia daqui é a cultura mais rasa. Um pouco disso se descobre através dos filmes do Michael Moore, em que a ideia deturpada de liberdade (“faço porque posso fazer“) aparece muito. Nos Simpsons e no Family Guy, a crítica ridiculariza ainda mais o jeito da sociedade se constituir nos Estados Unidos e esses são apenas os exemplos mais conhecidos.

A comparação com a erudição europeia (ou o imaginário sobre a erudição europeia) só diminui o julgamento que se tem no senso comum a respeito do cidadão médio estadunidense. Não estou falando, com isso, que o europeu médio é, necessariamente, mais inteligente; mas os acessos à cultura e a saberes universais, por exemplo, parecem ser melhor difundidos na Europa, especialmente no conjunto de países que formam o oeste europeu.

Cabe, aqui, explicar que não estou dizendo que existe uma cultura melhor e outra pior, como se pudesse qualificar isso, pois não tenho estudo suficiente de estética para debater. Mas estou debatendo o acesso geral à cultura, de modo que as pessoas possam consumir livremente (daí o apelo à liberdade, tão difundida naquela parte norte da América, faria ainda mais sentido) e não consumir apenas a cultura da indústria e do mainstream. Lógico que europeus também consomem muito o mainstream, mas tenho a impressão de que eles têm mais acesso a diversidade cultural e isso é civilizatório, porque quanto mais escolhas sobre os bens culturais, melhor para as formações individuais e coletivas de um povo.

Estou tratando de duas potências econômicas, que despejam nas periferias do mundo os produtos de suas indústrias culturais e influenciam o que será produzido nas próprias periferias. Então, apesar de, por exemplo, a música que mais se toca no Brasil seja a brasileira, ela é altamente influenciada pela produção estadunidense (não europeia, veja bem) e pelo que lá é considerado mais raso, mais simples, mais popular. Esses adjetivos em conjunto não taxam essa produção como ruim. Significa que é menos elaborado. A maior banda de rock produziu canções simples e não eram mal elaboradas, então falar sobre simples não significa dizer nem pobre, nem ruim, nem pouco elaborado. A necessidade de diversidade amplia o conhecimento e as percepções sutis e subjetivas de uma pessoa e isso, obviamente, se multiplica quando os acessos se ampliam em uma nação. Existe, por outro lado, um debate de que toda cultura está na internet e, quem quiser diversidade, basta buscar em poucos cliques. Esse argumento fala falsamente, ainda, sobre aquele discurso da liberdade como princípio, que tenho usado, aqui, como condutor do próprio valor fundamental estadunidense. Se, na internet, estamos cada vez mais relacionados às nossas bolhas, a liberdade é, portanto, falaciosa, já que o oferecimento de opções é nichado e, cada vez mais, atendem a um tipo de perfil. Em outras palavras, a liberdade seria, então, relativizada.

A ironia dessa pouca oferta de opções culturais reais e do pouco estímulo estatal à diversidade de produções culturais (essa pode ser uma afirmação errada ou incompleta, pois é baseada no que leio, escuto e vejo sobre os estadunidenses, que é restrito e parcial) se traduz um pouco nos absurdos que temos visto, ao longo desse período de pandemia, vindos dos Estados Unidos. O maior absurdo é a quantidade de pessoas que tomou desinfetante porque Trump disse que era uma opção válida. A relação da cultura com a “inteligência coletiva” de uma nação é muito íntima, pois um povo que consome culturas diversas tende a se informar mais (pois também lê, escuta músicas, frequenta espaços de arte). Então, se ser periferia econômica significa receber influência cultural direta das potências imperialistas — e, principalmente, os Estados Unidos nos mandam muitas influências, de todos os tipos –, parece que essa cultura mais rasa e simplória, esse apego por uma liberdade que não considera a sociedade e as respostas superficiais aos problemas complexos nos afeta diretamente.

Os Estados Unidos são uma potência imperialista que define sua liderança especialmente pelo viés econômico. Usa, por outro lado, artefatos culturais para que sua ideia de civilização e de sociedade, seus valores fundamentais em outras palavras, sejam absorvidos e a questão econômica pareça naturalizada. É a partir do poderio econômico que organiza seus parceiros e estabelece que tipo de dependência cada país terá de si. Além disso, do ponto de vista interno, desenvolveu um lema, que nem sempre é muito verdadeiro, que é o America first, ou seja, antes de qualquer um, a América (como se autodenominam) ou os americanos (nesse sentido, nem sempre esse ideário se sobrepõe a questões de racismo ou de desigualdade social, por exemplo, mas não é meu escopo lidar com isso). É o país mais rico, embora esse dado não fale sobre muitos outros indicadores de civilidade e evolução coletiva.

A pandemia em que estamos imersos fala muito sobre o que, então, valorizamos nesse período civilizatório. Acho que vários pontos da absorção da cultura estadunidense estão sendo coletivamente relativizados, porque o poderio imperialista econômico (e cultural, pelo menos, no ocidente, nesse momento) tem trazido especial desvantagem no manejo da pandemia. A partir desses legados culturais e de valores comuns que menciono, os Estados Unidos cometem dupla cretinice no processo: roubam equipamentos já comprados na China por outros países e leiloam esses equipamentos em território nacional, sem distribuir, por exemplo, a quem mais necessita. Os Estados Unidos, também, esticam os limites imorais das discrepâncias sociais na pandemia em vários sentidos, desde não oferecer saúde como bem fundamental (seus cidadãos que lutem, como se tem falado por aí), até a vulnerabilidade atingir completamente os desprotegidos (sua população conta com 15% de autodeclarados negros e, na taxa de mortalidade, eles representam 30% das vítimas fatais). O escândalo provocado pela salvação atribuída à cloroquina sem avaliação técnica é a cereja do bolo da sordidez que a crise viral causou nas terras de Trump, que se tornou um cínico farmacêutico de última hora. É preciso rever o modelo estadunidense de influência cultural (social e econômica, que estão subjacentes), tanto de seus produtos, como de seu ideário, pois, conforme a digressão que o presente artigo tem sugerido, a influência cultural do império contribui para os valores que as periferias também desenvolverão.

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Foto de Brad Courant, copiado das contas de Twitter identificadas. Elad Nehorai escreve “pelo menos eles estão finalmente admitindo isso” e, no carro, está escrito “sua saúde não é mais importante do que minhas liberdades!!”.

Sei que ter um país imperialista inspirador não pode ser um ideal de povo. Mas valores civilizatórios de cada nação deveriam ser moeda de intercâmbio cultural. É muito claro que, ao invés de ter um país que dita modas, valores e cultura, prefira a valorização de nossas construções coletivas e históricas, da diversidade do nosso espaço no mundo e, para além disso, que pudéssemos, então, escolher as influências culturais que aqui chegam, sob a égide do valor civilizatório e não do poderio econômico. Nesse sentido, nossa pobreza não é econômica ou subdesenvolvida, apenas. Nossa pobreza mais delicada — porque definidora de parte de nosso funcionamento social — reside em sermos um país tão rico culturalmente, mas que nega possibilidades de trocas igualmente ricas entre os povos que aqui vivem, além dos povos cuja base cultural é parecida com a nossa ou, mesmo, os que deram origem a nossa miscigenação.

Hoje, a título de exemplificação, foi mais um domingo em que gente com algum poder aquisitivo (pessoas que se sentem elite, mas apesar de estarem nesse lugar do mundo, tentam ser de outro, acreditando que é a vantagem econômica que lhes faz melhores) saiu às ruas com as bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos para defender insanamente o fim da quarentena e o fechamento dos poderes legislativo e judiciário. Seu princípio, dizem os manifestantes, a liberdade estadunidense. Esse é o retrato de nossa pobreza maior: a negação de ser pertencente a essa cultura, tão diversa e tão paradoxal, e a negação de valores universais, como o apreço à ciência e a própria liberdade como valor coletivo.

A deturpação da palavra liberdade é, para mim, um ponto fundamental. Em primeiro lugar, porque é desejo de todo ser humano (já disse a Cecília Meireles: “liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”) em contradição com a ideia da liberdade como slogan de realização estadunidense. Os contornos de liberdade que os Estados Unidos divulgam pouco se parecem aos de Meireles, mas estão circunscritos, em boa parte, ao que Michael Moore explicita: “faço porque posso e, se quero, posso“. A liberdade de consumo, como já posto, não se traduz em diversidade de artefatos culturais, mas mais em bolhas e em um gigante mainstream. O trabalho duro como valor que garante riqueza, status, saúde e bens básicos também é uma noção falaciosa da realidade da própria liberdade, já que quase todas as mesmas cem famílias ricas do fim do século XIX seguem ricas no fim do século XX, nos Estados Unidos. A liberdade dos estadunidenses não é um bem natural, nem um valor universal. É um bem construído com contornos muito mais ideológicos do que os comunistas — para opor ao liberalismo que estufa o peito desse imaginário — ou do que os anarquistas, mas vendido como um valor civilizatório.

Aos olhos estadunidenses, o resumo do valor contracivilizatório seria o exemplo cubano. A liberdade como bem, cujo desejo maior está explícito em Meireles, não parece ser, exatamente, o ponto forte do governo cubano, ainda que quase tudo que saibamos sobre a ilha de Martí seja intermediado através das lentes dos Estados Unidos. Ainda assim, nesse momento de pandemia, é Cuba que atua pela a saúde, pela vida e pela fraternidade, enviando delegações maiores ou menores de médicos para tratar o covid-19 pelo mundo. Ou seja, quem dá o exemplo de valor e civilidade é o lugar do mundo que recebeu as costas dos demais. Ora, ninguém é ingênuo de não perceber que o governo de Cuba realmente usa seus médicos como propaganda positiva e é a ferramenta possível deles, já que vários países não podem realizar comércio com a ilha. Mas o discurso que perpassa os cubanos, sempre que entrevistados individualmente, tem esse aspecto civilizatório, realmente; para eles, é um valor fundamental “não dividir o que sobra, mas dividir o que se tem”. Na vida prática, quem olha para o lado, nas potências e nas periferias, faz isso, efetivamente: com tantas inseguranças, com medo de faltar pão no fim do mês ou de o chefe não pagar o salário inteiro, divide o que tem, porque a miséria aparece sem paliativos e salta aos olhos, na pandemia. E, nós, aqui, na periferia do mundo, não podemos fingir que estamos cegos, porque os outros humanos, iguais a nós, que precisam estão, literalmente, nas nossas portas.

No mundo da pandemia, em que a potência mundial rouba dos países parceiros para aumentar a disputa no seu mercado interno e inventa mentiras que confundem os povos de todo o mundo, fora todos os demais absurdos já citados, essas noções de solidariedade e fraternidade fazem muita falta e, mais do que isso, nos permitem pensar em quais são os países a serem colocados realmente nos holofotes de exemplos a seguir em meio à crise. Redescobrir valores é uma tarefa urgente para o novo mundo pós pandemia. A periferia poderia se ajudar ou copiar os bons exemplos, mesmo os que estão entre nós. Imitar os estadunidenses não costuma ser uma boa ideia para nossa realidade local, mas, em momento de pandemia, é totalmente desaconselhado.

Não há dúvidas de que a influência estadunidense está entranhada inclusive nos nossos hábitos mais inocentes e impensados, mas tentar se desvencilhar do que é anticivilizatório, em direção ao diverso, ao tolerante, ao fraterno é uma tarefa de gerações, que deve começar por cada pessoa que acha que roubar material de EPI na pandemia é, no mínimo, obsceno. O mundo depois da quarentena será outro, como todo mundo repete. E será muito pior, com mais miseráveis, com uma crise enorme para contornar. Sem valores e sem civilidade, não iremos ao século XXII e não teremos netos.

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Escrevi esse texto enorme (ai, gente, desculpa! é sempre assim…) a partir da leitura de um artigo que li hoje, pela manhã, no El País América (AQUI). O artigo não nega problemas do governo cubano, nem no seu manejo com o prestígio internacional, mas indica uma questão importante: com tudo o que pode ser questionável na ilha, Cuba segue dando ajuda humanitária e tendo medicina excelente no país. E defende, ainda, que, nesse mundo com medo da epidemia, é precisamente disso que precisamos.

“O feminismo é o contrário da solidão” e por que Tiburi está certa

Hoje ouvi a entrevista que Manuela D’Ávila fez, na semana passada, com a Marcia Tiburi e fiquei pensando tantas coisas sobre meu feminismo, em como ainda sinto tanta dificuldade de ser mulher e na falta de paciência com homem fazendo homice. Não é de hoje que relato isso, tenho sido até meio monotemática.

Mas, durante a entrevista, fiquei viajando em dois temas, que logo explico. O primeiro ponto é o peso da cultura sobre os desejos que nós, feministas empoderadas, tomamos, ou seja, podemos ser empresárias, donas de casa, enfermeiras, ter ou não filhos, ter ou não relacionamentos e essa liberdade é ótima, mas que muitas de nós desejam os sonhos femininos do patriarcado (casar, ser mãe, exibir um homem, enfim). Não quero dizer que a gente não possa nada disso, podemos, lógico, isso e muito mais. Mas a questão é por que, justamente em função de fazer parte do imaginário da mulher ideal, nós, que refletimos tanto sobre ser mulher, nos revolucionamos tanto tantas vezes, ainda desejamos formas do patriarcado. Em outras palavras, minha dúvida é como o feminismo pode imprimir uma verdadeira ruptura com essa cultura, para que nossos desejos e opções sejam mais livres e repitam menos esses padrões. “Ah, mas a mulher pode ser mãe, se quiser, não há mal nisso”, podem me dizer. Sim, eu sei, concordo. Não estou falando da mulher, estou falando de decidir por a ou por b, dentre tantas opções, a partir de um imaginário que a cultura sempre lhe impôs, após rever e repensar sua condição. A mulher pode tudo: inclusive escolher as formas típicas do patriarcado é conquista do feminismo; mas o quanto o feminismo mexe com nosso imaginário e nossos desejos mais profundos, além de sua produtividade, é algo que ainda não sei mensurar. Fiquei pensando nisso, enfim, e posso não ter entendido nada de feminismo, desculpa, gente.

A segunda coisa que pensei ouvindo a entrevista é a frase da Marcia no livro “Feminismo em comum”, um livro simples (até trabalhei partes dele com minhas alunas), que apresenta uma síntese impressionante: o feminismo é o contrário da solidão. Não tenho muito o que explicar sobre isso, porque essa síntese resolve boa parte dos problemas que tive com o meu feminismo. E, por essa frase, vou contar uma situação bem delicada pela qual passei em abril de 2019 e acho que é importante dividir para que as pessoas entendam o que significa ser feminista e não estar só.

A Escola em que trabalho foi pichada durante um fim de semana de abril de 2019 e o fato repercutiu um monte. Vou linkar a reportagem do Sul21, porque prefiro que tu clique lá do que na Record, no SBT ou na Gaúcha. A reportagem AQUI. Muitas coisas chocaram a comunidade, além, lógico, da insegurança: muitos dizeres sobre “Suzano voltará”, em referência ao massacre da escola em Suzano, São Paulo. Mas o que mais apareceu não foi sobre Suzano e, sim, sobre misoginia. Além de ofenderem As alunAs, três professoras e o diretor foram citados, em ameaças. Uma das professoras, eu: NINA VO TE COME. Antes de qualquer coisa, fiquei decepcionadíssima com a ortografia e disse: “Não pode ter sido meu aluno!”. Entrei na Escola, na segunda-feira, indo para a sala de aula, e alguém me parou no corredor para dizer todo o incidente e o que tinham pichado sobre mim na quadra. E eu fui dar aula. Não sei como, mas fui e achei que meu lugar era aquele mesmo.

A situação toda foi super trágica, os colegas com medo, todos muito nervosos e consternados, alguns colegas, totalmente sem clima para trabalhar, tiraram licença saúde. A comunidade em que trabalho é a campeã de incidência de violência contra a mulher em Porto Alegre. E, tonta e burra, eu não tive receio de nada. Todo mundo fragilizado, dizendo que eu poderia contar com a pessoa; e eu estava feliz de ter gente ao meu lado, mas não me sentia vulnerável. Entrei em todas as salas que tinha para entrar e disse, com o peito aberto: “não posso explicar um crime, porque não fui eu a criminosa”. Não tive medo. Fui altiva o tempo todo. Claro que minha reação inicial foi ingênua e desmedida, pois ficar apreensiva e fragilizada significa, dentre outras reações naturais, senso de sobrevivência. Ao longo da semana, tive de ir à delegacia, fizemos atividades para valorizar a paz e um monte de arranjos importantes para que as crianças e suas famílias fossem acolhidas e se sentissem melhor, porque todos nós fomos violados. Isso é super importante e acho que o coletivo de professores acertou. Gostaria de salientar que a violência sofrida foi uma violação: invadem um espaço coletivo, ameaçam as pessoas que ali convivem, continuam frequentando esse espaço (não todos, mas a maioria dos agressores eram alunos).

Mas esse movimento, para mim, naquele momento, era pensado e refletido sob a ótica profissional. Pessoalmente, estava bem, tinha coragem, me senti forte. Tive de falar sobre o assunto com cuidado com minha família, que realmente temia por mim. E, por causa das reações dos que estavam preocupados, passei a ter um pouco mais de cautela e de cuidado. Em função das pessoas próximas e dos conselhos do terapeuta e da polícia, achei prudente tirar uma semana de licença e assim o fiz. Expliquei aos alunos que essa era uma medida solicitada pelos profissionais da delegacia, mas que estava bem. Meus alunos me encheram de amor. O tempo todo. Tive afeto e admiração durante o tempo todo. E me senti uma mulher mais forte. Nem todos os colegas tinham esse aporte que tive, mas eu tive e, porque tive, fiquei em pé.

Um mês depois, com a ajuda do meu amigo Dani (que trabalha no mandato da Deputada Rosário), da Polícia, do DECA, acharam os quatro meninos envolvidos no crime — algumas pessoas chamaram o incidente de vandalismo, para mim, não, é crime, sem termos paliativos. Os meninos faziam ou fazem parte do movimento jovem de uma igreja evangélica e há boatos de que lideranças dessa comunidade avacalham os professores da Escola, especialmente os que têm opiniões. Esse, sim, foi um ponto delicado para que entendesse e questionava: a) o que faz uma igreja se colocar contra uma escola?; e b) por que eu?.

Seis meses antes, organizei um seminário para debater como as eleições funcionam (setembro de 2018) e por que a democracia é importante. UM membro dessa igreja (há várias outras no bairro e apenas essa confronta a Escola) se sentiu ofendido em função de achar que eu estava doutrinando e ameaçou (no Facebook e na SMED) As professorAs da Escola. Minha chefia pediu que eu deixasse de dar esse seminário, que não tensionaria com quem fez a crítica e ficou por isso. Embora tenha ficado incomodada com a postura covarde, entendi que não seria muito prudente me colocar na berlinda, especialmente sem respaldo.

Após o incidente da pichação, dois ou três meses depois, um grupo de alunas pediu para fazer um grupo de meninas fora da aula, para que eu “ensinasse a elas a serem feministas”. E minha primeira pergunta a elas foi: “de onde tiraram que sou feminista?”, já que, após o caso das ameaças no período antes da eleição, do caso das pichações e sabendo da violência recorrente às mulheres na comunidade, quase não me manifestava abertamente a tema algum e não falava tacitamente sobre feminismo. E elas disseram que elas sabiam que eu era, porque minha postura dizia isso. Saber disso foi um aconchego sem precedente.

Toda essa história — que até parece ser de superação, mas não é, é de alguém que foi acolhida e que, por isso, acha que entende um pouco sobre o que faz e sobre onde faz — contempla um episódio de uma mulher que, por seu feminismo, não se sentiu sozinha. E, por não se sentir sozinha, teve altivez. E, por ter altivez, serviu, um pouco que seja, de exemplo.

O feminismo é civilizatório. E, por ter saído desse episódio sem dores, mas com aprendizados (e minha reação foi considerada como a única “estranha” no grupo de professores), acho que fiquei bem (não darei crédito para os anos de terapia, hahahahaha). Em todas as vezes que me perguntaram como eu me sentiria se tivesse de ficar frente a frente com qualquer um dos que cometeram o crime, sempre achei que, ao me encarar, eles mijariam as calças.

Melhor do que isso: nenhum dos quatro garotos era meu aluno; eu estava certa, desde o primeiro dia. Ou seja, meu feminismo ecoa para além das paredes das salas em que trabalho e é por causa dele que não estou só.

*** Não estou contando uma história para dizer como sou forte, porque nem sou muito. É difícil me manter em pé, sei meus limites, tropeço muito e tento lidar com isso. Estou dividindo UMA situação de fragilidade em que o suporte afetivo foi o ponto de estabilidade e colabora com a prova da tese feminista sobre solidariedade.

Não tenho uma vida instagramável

Sim, existe esse termo. Em inglês, pelo menos: INSTAGRAMMABLE. E mais: há eleição de lugares mais instagramáveis para postar fotos, por exemplo, AQUI.

Quando falo sobre solidão e tristeza na adolescência com os alunos, explico que a vida da gente está cada vez mais feliz. Mas feliz para fazer o vídeo ou a foto para postar nas redes sociais. Digo sempre que suas festas e seus encontros são, muitas vezes, entediantes e que só riem, falam alto e se animam quando aparece uma câmera. E eles sempre confirmam: é isso mesmo. A felicidade é instante para o Instagram.

 

Ano passado, desfiz meu Instagram. Comecei a usar mais o Twitter. Passei, pouco a pouco, a entender que, assim como a maioria, estava usando o Instagram para ganhar biscoito. Fazia publicações brincando com alguma coisa minha, debochando ou fazendo um texto que era mais do que uma foto e isso nunca foi compreendido. Porque o Instagram não é para isso — parece óbvio, mas não foi, para mim. Um dia, fiz uma maquiagem para sair e parecia que, intencionalmente, eu tinha usado referências sessentistas no rosto. Fiz uma foto, postei no Instagram e brinquei com as palavras e as dimensões de seus significados: “a maquiagem está vintage, antiga, ou de velha?”. Ninguém leu. Mas um monte de curtidas — linda! gata! amei! — que não tinham nada a ver com a proposta, estavam lá. Entendi, ali, que queria ser lida, não vista.

A noção de rede social foi, aos poucos, ficando mais clara na minha vida. Gosto delas, uso-as. Mas elas são sociais. E, socialmente, tenho tido vontade de publicar esse e outros textos do blogue, de manter meu ativismo e minha crítica político-social, de divulgar arte e atividades coletivas. Minha vida pessoal é outra coisa.

Há alguns dias, fiz aniversário e comemorei. Tinham cerca de cinquenta pessoas na festa, nem sabia muito como lidar com todo mundo, porque era muita gente (para mim, pelo menos) e acho que, apesar de mim, super mocoronga, deu tudo certo. Várias pessoas mandaram fotos e vídeos da festa e eu os adorei. Não publiquei nenhum e estou feliz que me mandaram registros de um dia tão feliz. Mas alguém perguntou por que não fiz uma postagem no Facebook e eu disse que a festa estava tão boa, estava um clima tão legal que a rede social não fez falta.

Tenho feito algumas coisas e tirado fotos. Tenho feito fotos afetivas, ternas, de momentos felizes e de momentos especiais. Essas fotos são compartilhadas, claro. Mando para quem gosto e quem está no meu entorno. Algumas pessoas poderiam e deveriam ter também essas fotos, mas esqueço de enviar e, pensando bem, elas têm a mim, ou deveriam saber que têm a mim, que me sinto bem mais importante do que uma imagem. A rede social não é para isso. Não tenho uma vida instagramável, não preciso de biscoito. A vida precisa de privacidade e da gente mais inteira dentro dela, cuidando dela, vivendo ela, com sua pouca preciosidade e sua alegria sem euforia. Não preciso de curtidas. Nesse mundo, cada vez mais maluco, preciso curtir.

Claro que cada pessoa faz o que quer da sua rede social. Longe de mim cagar regra para o que fazer com o seu Instagram. E exibir sua ida ao cabeleireiro, ou sua tarde na academia, ou seu fim de semana no Nordeste são opções que devem ser respeitadas. A pessoa dimensiona o que quer que os outros saibam dela e é natural que ali fiquem os melhores momentos, não o dia em que se derruba a caixa de ovos no mercado ou a entrada no ônibus às 7h da manhã. No meu caso, a rede social perdeu a graça porque não acho que minha vida seja de melhores momentos — não tinha “melhores momentos” para compartilhar — e os melhores momentos que, de fato, existem são muito particulares para serem postos numa vitrine. E assim funciona para mim; para os outros, não tenho nada a ver.

Tenho me preocupado, por outro lado, em como a rede social — mais o Instagram — dão a sensação de que a vida da pessoa é realmente sem graça. A gente vê um monte de gente feliz, eufórica, linda e maquiada e nossa vida sempre parece menos do que isso. O pior é que essa sensação não é errada; não para mim. Nossa vida é mesmo sem graça, ou há algum glamour em trabalhar um monte para conseguir esticar as pernas no fim do dia ou em pagar boleto na virada do mês? Mas a vida pode ter sentido assim, também, sendo comum, sendo igual, sendo simples. O sentido deveria ser único de quem a vive. Minha vida não pode (nem deve, nem seria certo) servir de modelo ou de exemplo para ninguém. Que cada um, portanto, ache seu jeito comum e sem graça, aprenda a amar esse seu jeito e viva bem consigo. Porque a vida é isso mesmo, não é muito mais do que isso. E que a pessoa encontre beleza, amparo e brilho no meio dessa existência simples e nada idílica, tão igual a qualquer um. Não digo, com isso, que a gente deva aceitar a mediocridade como régua, mas apreciar a vida comum, porque é a nossa. Não estou propondo passividade sobre uma existência sem graça, mas de criar sentidos que não sejam instagramáveis e moldados para apenas parecer.

A vida é mais, muito mais do que rede social. Fomentar a rede social gasta nosso tempo, dá muito trabalho e me tira da rede real, do mundo orgânico. Estou dizendo isso porque realmente gasto tempo com minhas redes sociais; mas, quando esse tempo estava relacionado à exposição pessoal, sentia que, além de gastar tempo, gastava energia e, mesmo que só recebesse “elogios”, sentia tudo um pouco vazio. A rede é social, então, é para “coisas” sociais. Estou usando diferente, agora: publico o que não é íntimo (ou até é, mas fica o tão íntimo quanto eu quero), o que é coletivo, as raivas político-sociais que gostaria que fossem compartilhadas, o que quero que leiam de mim.

Assim como Tavito e Zé Rodrix, na voz da Elis Regina, na vida que não é virtual, desejo o luxo da sensação de privacidade (o tanto que é possível, já que a privacidade não existe mais), quero uma casa no campo (e o campo pode ser esse meu entorno), “onde eu possa ficar no tamanho da paz / e tenha somente a certeza / dos limites do corpo e nada mais […] onde eu possa plantar meus amigos / meus discos e livros e nada mais“.

“Olha lá, quem acha que perder
É ser menor na vida
Olha lá, quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar
Eu que já não quero mais ser um vencedor
Levo a vida devagar pra não faltar amor”
(Marcelo Camelo)

O amor nesses tempos de cólera

O Tinder era visto da melhor maneira, por mim. Logo que soube do que se tratava, realmente pensei que fosse uma ferramenta de possibilidades de amor real e achava que fosse um aplicativo de muito impacto. Nas minhas mais esperançosas digressões, pensava que, rapidamente, mais pessoas se encontrariam e teriam amores mais racionais e mais pensados.

Minha lógica não era um erro em si. Não houve, nos últimos tempos, uma decepção do que pensava para minhas novas opiniões, propriamente. Mas, pouco a pouco, vi que minha percepção ingênua era muito rasa, não se configurava em romances melhores e não dava conta dos problemas reais dos afetos. A ferramenta aproxima pessoas, mas há alguns anos agências matrimoniais (que nome, ora!) já faziam isso e não sei se há alguma diferença nas experiências.

Comecei a compreender que não há problema no Tinder. Há problema nos afetos. E a culpa não é das pessoas que usam aplicativos, mas do capitalismo. E, nesse caso, eu que não gosto da palavra culpa, mas da palavra responsabilidade, uso culpa, mesmo. Porque a culpa que o capitalismo tem nas costas, meodeos, é sem fim.

Uma vez, fui a uma plenária em campanha política — e daí estou falando de eleição dos partidos de esquerda — e uma das pessoas que falou (camarada, parceiro, companheiro, colega, enfim) disse que o capitalismo nos tira a vida social. Depois ouvi o Saramago e o Galeano falando sobre isso também. E me intriguei com essa noção, porque eu era muito jovem. Como o capitalismo é um sistema econômico, entendia que a vida social era afetada pelo trabalho e tal. Mas as dimensões disso, e eu fui entendendo pouco a pouco, são maiores e não afetam “apenas” o mundo produtivo, o improdutivo e as dimensões afetadas pelo trabalho.

O Tinder surgiu quando o amor já tinha virado utilitarista. O Tinder não inventou nada; de certa forma, até acho que amenizou o que poderia estar um pouco pior. O capitalismo já tinha nos tirado a vida com amigos e nossos “amigos” acabavam sendo os colegas de trabalho. Nós passamos a nos gostar, principalmente, pela afinidade em fazer a produção. Essa é uma realidade que comecei a entender quando era pequena. Por causa do trabalho, minha família saía pouco, não era organizada fora da rotina trabalho-família e os assuntos, nos raríssimos encontros de amigos, era o trabalho, porque eram colegas. Conversar sobre trabalho segue sendo uma dimensão fundamental dos assuntos entre amigos, mesmo fora do ambiente laboral. Eu lia que grupos de amigos eram formados por interesses em comum, mas o “interesse em comum”, eu via, era o trabalho. E será mesmo que o trabalho é um “interesse”? E será que, entre nossos amigos, a gente não deveria, justamente, dar folga para si e esquecer o trabalho?

O trabalho, paulatinamente, foi, ironicamente, nos desorganizando coletivamente, especialmente nos ambientes mais urbanos. As associações de funcionários, mesmo aquelas cujo objetivo era ter uma sede campestre, por exemplo, foram diminuindo de quantidade e de importância. Os sindicatos — como forças de apoio ao funcionário — só seguem como entidade organizadora, significativa, de luta e de convívio em alguns setores de trabalhadores do setor público, fora uma e outra exceções. A precarização do trabalho nos separou em pequenos grupos de afinidade comum — cuja característica desse ou daquele grupo, ou da nossa “panela”, é, justamente, a forma com que encaramos a relação com o trabalho — e, fragmentados, criamos grupos de amigos, que são “colegas de trabalho” para, às vezes, tomar cerveja e desabafar. E desabafar é necessário. Em suma, é uma relação tautológica: me junto aos colegas que lidam com o trabalho como eu e uso o grupo para ter suporte para reclamações semelhantes. Claro que grupos de amigos não funcionam apenas para isso, mas funcionam, frequentemente, a partir desses parâmetros.

É claro que colegas de trabalho podem ser amigos. Devem, inclusive. Mas é muito melhor ter amigos em um espaço e colegas para pensar seu trabalho em outro. E tudo bem que esses grupos sejam formados pelas mesmas pessoas, às vezes, mas não obrigatoriamente. Mas aí tu ri. E pergunta, incrédul@: quando?? quando sair com amigos e ter um espaço?? Pois é. É isso. O capitalismo nos tira desse espaço de pensar, de lazer, de ócio, de debate, de comunhão, de compartilhar. Com isso, tira, também, o espaço de afetos, do riso, do gozo e do amor. Não à toa Deleuze diz que “o poder requer corpos tristes. O poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A alegria, portanto, é resistência porque ela não se rende. A alegria como potência de vida nos leva a lugares onde a tristeza nunca levaria“. Desde a minha infância até o início da idade adulta, via as pessoas sem muita vida social, com a vida social reduzida à família e ao seu trabalho. É, nesse sentido, culpa do capitalismo que pessoas não se encontrem, não se articulem e, para ter vida social, tenham de ficar restritas a formar uma família e se dedicarem a ela.

Bem, isso foi há algum tempo. Já não é mais.

Hoje a falta de tempo é tanta, que nem formar um par está sendo fácil. Hoje somos sucumbidos pelo trabalho e por seu pragmatismo e assumimos essa lógica na vida. Já não está fácil se relacionar; formar uma família, então, é um desafio enorme. As famílias que se formam, pode perceber ao teu redor, frequentemente são casais que trabalham muito; os que têm filhos já não têm tanta influência na educação de suas crianças e o cansaço (de tanto trabalhar) nos tira convívio e ócio. Nos tira alegria e propósito. Nossos amigos, agora, são nossos colegas e tratamos boa parte deles a partir de uma competição (que a gente considera saudável), em que desconfiamos, em que não podemos nos sentir ferrados ou traídos por eles, embora eles sejam, às vezes, nossos confidentes, porque entendem o terror e a desumanidade que estamos passando no ambiente laboral.

A inserção nas redes sociais e a necessidade de mostrar (muitas vezes, eufórica e cinicamente) como estamos bem são sintomas de como a solidão nos afeta e é indesejável. Pepe Mujica fala muito sobre isso, sobre como nos afetamos com a solidão: “A vida se vai e a pergunta é: basta gastar sua vida pagando contas, e contas, e contas? E você vai ter tempo para os afetos, para o amor, para seus filhos e amigos ou vai ser escravo do mercado? Essa é a pergunta que você tem que fazer. […] Os seres humanos são gregários, não podemos viver em solidão, vivemos em grupos sociais. Tinha razão Aristóteles quando dizia que o homem é um animal político“. Quando leio os relatos corajosos de pessoas que sofrem com a depressão, com a ansiedade ou com síndromes, por exemplo, penso em como essa sociedade, que adoece e exige que a gente se pareça sempre bem, tem o poder de piorar esses quadros de saúde e de aumentar a sensação de impotência e de estar sozinho. Quer dizer, além de trabalhar desumanamente, o capitalismo exige que a gente pareça realmente estar bem o tempo todo.

O Tinder é o utilitário para “resolver” essa solidão: a de não conseguir sair com ninguém, nem sequer alguém do trabalho. E, com alguma frequência, há pessoas que parecem não saber utilizar, pois estou segura de que há expectativas altíssimas para uma relação entre pessoas comuns, que não são uma checklist de atributos (seja para encontros sexuais, seja para encontros afetivos). Uma vida atribulada, como temos tido, em que é fácil sucumbir ao trabalho ininterruptamente, não dá espaço para amores idealistas e sinuosos. O Tinder é uma possibilidade de encontro no meio dessa vida que é casa-trabalho-casa (e alguma loucurinha para espairecer no fim de semana). O Tinder é, em alguns casos, a esperança sonhadora do ócio de fim de semana com seu par, seus gatos e/ou seus cachorros na cama do domingo. E, mais do que isso, é uma possibilidade de encaixe de requisitos de ambos os lados, sem esforço e sem trabalho (porque o trabalho não aguentamos mais).

Nunca fiz um perfil no Tinder e acho que nem sei mais como se flerta, apesar de achar bonitinho o ritual da paquera (minha experiência mais próxima é ouvir histórias adolescentes, que adoro!, e — acredite! — aos 16 eles e elas já estão desesperados por Tinder, porque sentem que precisam mostrar que não falharam em ter alguém, sentem que não podem ser solitários, sentem que flertar dá trabalho e trabalho é ruim, necessariamente ruim). E, se posso recomendar algo para alguém que deseja ter um encontro, sempre recomendo o Tinder. Não há mais flerte nos bares, nem nas festas, nem em nada. Não se conhecem mais pessoas e não há mais tentativas de aproximação pouco a pouco. Nosso tempo é escasso. Nossa relação com “ter algum trabalho” para fazer algo é ruim. A gente precisa de aplicativos para se humanizar.

Tudo isso é culpa do capitalismo. O capitalismo nos tira a vida, não apenas nos matando, mas tirando os brilhos possíveis da existência. O capitalismo nos exige viver para produzir e ganhar mais para viver minimamente. Viver minimamente deveria vir sem esforço. Deveria ser o normal, o comum, o básico. Tudo que eu queria era poder viver uma vida comum sem esforço, ter mais tempo livre, ter uma rotina mais leve e não viver para pagar boleto. O Tinder (e seus assemelhados, é lógico) é um depósito de esperança de gente que quer ser um pouco mais gente. E tu pensa: tá, Nina, e o monte de macho escroto que só entra nessas redes para catar gostosa e pagar de comedor? Bem, esse é o cara que já perdeu a esperança e que deixou o capitalismo o imbecilizar (e vale para mulheres, também, só fiz uma ilustração estereotípica para fins didáticos).

O capitalismo não nos quer juntos, não nos quer amando, não nos quer rindo, não nos quer coletivos, o Deleuze, já explicou isso. O capitalismo só nos quer produzindo aquilo que não vamos poder usufruir (e isso disse o Marx). E solitários, e infelizes, para não ter ânimo para nos organizarmos e criarmos algo além dele.

 

Por que (nas redes sociais) pareço obcecada pelo problema da mobilidade urbana?

Há cinco anos, uma bigorna (metafórica, claro) caiu sobre minha cabeça. Era uma adulta (jovem adulta, para esclarecer) esquerdista (light, como se dizia à época) que vivia no bairro mais descolado da cidade e achava o debate de classes uma terminologia meio pesada, ou datada. Então, o que aconteceu? Fui chamada no concurso da Prefeitura de Porto Alegre e parei de dar aula nas escolas centrais, mantidas pelo Estado (ia trabalhar caminhando, inclusive, nem me ocorria ter um emprego em que dependesse de ônibus).

Muitas pessoas acharam que fiquei “rica”, pois professores municipais recebem um salário muito melhor do que os estaduais. Eu diria que, hoje, os municipais recebem — apenas — e discutir as diferenças das Redes (Estadual e Municipal) me interessa, mas não nesse texto, afinal, tu já leu o título e criou expectativas. Voltando ao assunto central: eu também achei que tinha ficado “rica”, porque havia um monte de outras condições de trabalho que me atraíam, além da grana.

Há cinco anos, fui trabalhar em duas periferias: Lomba do Pinheiro e Vila Nova. Fui a dois espaços que, nem de longe, são os mais conturbados da Cidade. Conhecer essas comunidades tem me permitido mudar completamente o que penso sobre quase tudo relacionado a posicionamento político, costumes, sociedade, organização dos espaços públicos. Inicialmente, não conhecia o senso de comunidade, em que eu não era uma igual aos que ali viviam, ao contrário, era hostilizada antes de qualquer coisa. E não entendia tal mecanismo. Havia uma sensação inicial super parecida a Dogville. Trabalho, desde então, com adolescentes que estão “saindo” dessas escolas, para cursar o Ensino Médio, geralmente, no centro. As escolas municipais, em Porto Alegre, se caracterizam por estarem nas periferias e oferecerem, majoritariamente, o ensino fundamental.

Logo que comecei a trabalhar nesses espaços, tive alguns passeios pedagógicos na zona central da Cidade. Bem, eu julgava, inicialmente, que os alunos não sabiam se comportar nesses eventos: teatro, ônibus, centro da cidade. Poderia compreender como uma parte significativa da classe média faz: explicar o comportamento através do desajuste. Então, famílias desorganizadas, situação de vulnerabilidade econômica, violência ao redor seriam os motivos para a “falta de comportamento”. Quantas vezes não lemos essa argumentação e repetimos essa ladainha, não é mesmo? Às vezes, repetimos essa fórmula, mesmo com boa vontade, fazendo a diferença entre nós e eles, em que nós seríamos os civilizados, no nosso esquema mental: uma pretensão, lógico. Mas, aos poucos, entendi que, para trabalhar, entrava na comunidade (que era cada vez menos hostil, por sorte), mas a comunidade não vinha até a CB (Cidade Baixa, meu bairro, onde estou, agora, escrevendo esse texto imenso). Os alunos não conheciam a cidade onde moravam (e os motivos, bem, os motivos todo mundo repete como senso comum).

Para que chegasse no horário das escolas era um inferno, pois a mobilidade não funcionava nem para mim, a garota (adorei “garota”, deixa minha síndrome de Peter Pan) da classe média, nem para as pessoas das comunidades. Nos primeiros anos, ainda, em três dias na semana, eu tinha de sair da Lomba do Pinheiro e me deslocar até a Vila Nova, durante o período do almoço, o que era extremamente desagradável pelo pouco tempo disponível. Esse foi o preciso momento em que descobri o que significava mobilidade urbana, da pior maneira, na carne. Na verdade, descobri a falta dela. Eram caronas cronometradas, ou três ônibus, se tivesse sorte. Era comum almoçar sanduíche no coletivo, quando conseguia sentar. Era cansativo começar a aula da tarde, sem ter feito intervalo decente. Para ilustrar, segue abaixo a distância entre as escolas e, para quem conhece a Cidade, pode perceber a noção da imensa dificuldade de ir de um ponto a outro, já que são bacias com comunicação quase nula (quase nula, porque houve alguma melhora com os sistemas dos Ts).

Screenshot_2020-01-31 Google Maps

O transporte era uma bosta, para mim. Mas a passagem cara, os ônibus em péssimas condições, os raros horários oferecidos eram os elementos que faziam a mobilidade urbana péssima para mim se converter em horrível a impossível para aquelas famílias que lá longe moravam. Compreendi melhor quando, em um daqueles passeios pedagógicos, os alunos disseram que foram para “Porto Alegre”. Inicialmente, achava que essa expressão se justificaria na Lomba do Pinheiro, porque o bairro, antigamente pertencente ao município de Viamão, acabou se anexando à Porto Alegre recentemente. O fato é que não demorou muito para escutar a mesma coisa (“vamos para Porto Alegre?”) na Vila Nova.

Com o tempo, passei a perguntar aos alunos do terceiro ano do ciclo C (o equivalente ao 9º ano do fundamental, nossos “formandos”, cuja idade varia entre 14 e 17 anos) quantos conheciam o centro da Cidade. Quase todos já tinham ido ao centro: desce do ônibus, faz um documento, volta para o ônibus e, assim, se perde um turno inteiro e não veem nada além disso. Descobri, ao longo do tempo que a gurizada não conhece o centro de Porto Alegre, que é comum o relato de que nunca pegaram ônibus sozinhos, mesmo os mais velhos, e que não conhecem mais de dois bairros além do seu, de origem. Não vão à praia nem ao interior, ou seja, a imensa maioria de alunos passa suas férias em casa.

Em se tratando da oferta, os ônibus, nessas comunidades, são “abundantes”, quando se considera o horário comercial da Cidade. As pessoas que vivem nas periferias passam em torno de uma hora no ônibus (moradores de bairros mais ao sul da Vila Nova podem ter viagens ao centro cuja duração pode ser de quase duas horas), o intervalo entre viagens costuma ser de, mais ou menos, 15 minutos em horários de pico e, frequentemente, algum desses ônibus “some” — o que nos obriga esperar por meia hora e não, apenas, os 15 minutos previstos. Esse parágrafo trata de muitos dados problemáticos: a) na periferia, não há muitas opções de linhas, portanto, UMA única linha, que seja a cada quinze minutos em horário de pico, leva muita gente sem conforto, de forma precária (para amenizar isso, existem algumas linhas “rápidas”, que não param em todas as paradas e funcionam, principalmente, nos horários de maior demanda); b) o tempo de demora de uma viagem da periferia para o centro desestimula conhecer o centro, ou seja, a pessoa pega o ônibus, faz o que precisa no centro (geralmente trabalho) e corre para estar de volta no seu bairro; c) fora do horário de pico, o intervalo entre as viagens costuma ser de 25-30 minutos. Toda essa informação é referente ao uso dos ônibus de segunda a sexta, durante o dia. Aos sábados, há horários “decentes” apenas até às 14h (hora de trabalhar); noites em todos os dias, sábados à tarde e domingos são uma vergonha, tratando apenas dessa questão: a oferta de viagens e o tempo de espera pelo ônibus. Em suma, os ônibus, em Porto Alegre, servem meramente para levar trabalhador ao emprego; ora, essa visão não pode nem deve ser a única função do transporte coletivo, pois, com isso, tira do cidadão o direito a conhecer, a se apropriar e a usufruir do espaço comum, que é a cidade.

O preço da passagem também interfere imensamente nessa dinâmica, é claro. A passagem de ônibus em Porto Alegre é muito cara, a mais cara entre as capitais. Para sair com três filhos e passear no Gasômetro no fim de semana, por exemplo, uma mãe da periferia gastaria quase 40 reais em passagem. É um absurdo, se pensarmos no poder aquisitivo das pessoas. Além disso, não há mais programas mensais de “passe livre”, em que um domingo por mês não havia cobrança de passagem e, tanto a gurizada, como as famílias, podiam usufruir de sua cidade. O uso de ônibus, que naturalmente prioriza o deslocamento para o trabalho e para os estudos, tornou-se instrumento cidadão para apenas esse tipo de transporte. É tão caro que pessoas não são contratadas pelo custo do deslocamento. É tão caro que alunos evadem, porque não conseguem pagar metade do valor do ônibus ao longo do mês. É tão caro que não serve para o lazer. É tão inseguro, ineficiente e incompetente que mal serve para o trabalho, de modo que a classe média está substituindo o ônibus, sempre que pode, pelo Uber (e assemelhados). Mas o que faz, então, a periferia, que precisa usar o transporte coletivo?

A periferia é tratada, de maneira geral, muito mal, em Porto Alegre. Não há cuidado com esgoto, com calçamento, com limpeza urbana, com organização nos bairros, com moradia decente, com assistência à saúde. As pessoas que vivem na periferia são tratadas como menos do que seres humanos. Sobre a mobilidade urbana, não apenas mas especialmente nas periferias, a parada de ônibus não tem iluminação. A Prefeitura mantém gramas altas e arbustos sem poda ao redor das paradas. Várias paradas não têm cobertura. A Prefeitura lançou um aplicativo para checagem de horários dos ônibus (segundo a EPTC, toda a frota da cidade tem GPS) que não funciona, ora porque o aplicativo está fora do ar, ora porque as informações do aplicativo não condizem com a realidade. Os ônibus são excessivamente antigos, barulhentos, sem cuidado e sem limpeza. A classe média que pegue Uber.

Com o tempo, passei a entender, em alguma medida, aquele comportamento dos alunos que era tão estranho, logo que fui admitida nas escolas municipais. A periferia não é sem educação. Não é agressiva. Não é “agitada”. Não sofre com algum desajuste. A periferia é maltratada. As populações que vivem longe do centro sofrem muitíssimo mais com a gentrificação. A periferia é segregada e desrespeitada. O transporte público é apenas mais uma das dimensões que contribui para essa hostilização da periferia. Esse tratamento agressivo é tão óbvio para mim, que assusta. Para o morador da periferia, por outro lado, essa dimensão cruel da mobilidade urbana é, igualmente, óbvia, mas não causa estranhamento, pois o sujeito precisa sempre reclamar da falta de água, da falta de luz, da falta de tudo, o tempo todo e ninguém lhe dá ouvidos.

Gosto de levar os alunos ao centro, para fazer o passeio do ônibus turístico e para que usufruam da cidade, num aparelho diferente e inusitado. O passeio é um serviço oferecido pela Prefeitura. Não há isenção para alunos das escolas municipais (apenas para as turmas de B10, o equivalente ao 4º ano) e, mesmo as turmas que usufruem da isenção, precisam pagar a passagem que os leve até o centro (embarque da Linha Turismo). Esse ano, para a realização desse passeio, cujo custo seria de 24 reais por aluno, fiz uma rifa. Mesmo assim, foram poucos. Porto Alegre é tão distante e desinteressante para os alunos, que uma turma de C30 (equivalente ao 9º ano) não quis fazer gratuitamente o passeio da Linha Turismo como presente de formatura. A própria Cidade não acolhe seus cidadão. A própria Cidade é inóspita. Como, há cinco anos, eu iniciaria um trabalho na comunidade desejando ter super receptividade, se tudo o que chega para aquelas populações, vindo de “Porto Alegre”, da “Prefeitura”, das “secretarias municipais”, é precário e desumano?

Essa semana, o Executivo — que não tratou da mobilidade urbana ao longo dos últimos três anos, mas facilitou o lucro das empresas que oferecem o serviço, além de precarizar, ainda mais, a empresa pública de transporte — lançou um pacote para diminuir o preço da passagem (sem afetar o lucro das empresas). Era uma mágica nunca vista. Onerava todo o resto da cidade e todos os demais serviços, mas realmente diminuiria o valor da passagem. Segundo o Sul21, “a Prefeitura diz que conseguiria reduzir em R$ 1,00 a tarifa de 2020 e, a partir de 2021, oferecer passe livre para todo trabalhador formal, passagem de no máximo R$ 2,00 para o usuário geral, passe estudantil a R$ 1,00 e isentar as empresas do vale-transporte“. O custo dessa proposta era alto e irreal. Inclusive o próprio partido do prefeito disse que havia erros imperdoáveis na condução dessas medidas: a) pouco tempo de votação na Câmara de Vereadores; b) nenhum debate sobre o pacote e seus impactos; c) elementos inconstitucionais; d) medida eleitoreira (o prefeito tem rejeição imensa) que funcionaria como chantagem (“viu? pelo menos eu tentei. eles que não votaram…”); e) apenas alguns responsáveis pela mobilidade no Governo tinham informação sobre o tal projeto. A Câmara cancelou essa votação, porque era absurda mesmo — aliás, embora a Câmara vote com o prefeito, ela tem sido o espaço para amenizar suas maldades, que sempre podem ser piores do que o que tem sido aprovado. O prefeito, tão interessado no pacote, estava no litoral, durante a votação. Sobre as medidas, nem todas eram absurdas — seu conjunto, sim, e várias merecem aprofundamento –, porém demandam tempo de debate e avaliação dos impactos na Cidade (para saber quais medidas e analisar, clica AQUI).

Desde que comecei a trabalhar para o Município, repensei a diferença absurda de classes. Embora me sinta tão “classe trabalhadora” como as pessoas com as quais convivo na comunidade, agora na Vila Nova, e aprenda com os espaços diferentes, não posso dizer que as escolhas são iguais entre nós. Pelo lugar que vivo, posso escolher o bairro que vou, com facilidade. Tenho ônibus disponíveis de quase todas as bacias e poderia ir a muitos lugares. Conheço vários bairros, sei andar na cidade. Por isso, aprendi a estar fora dela também. A população de periferia tem esse direito quase negado, pois sua locomoção é restrita e utilitária.

Há um perfil de Twitter e Facebook de que gosto muito e interajo bastante sobre o tema da mobilidade urbana, que é o MOL — Meu Ônibus Lotado. Sempre que tenho oportunidade, compartilho suas publicações, porque elas me permitem entender cada vez mais a cidadania que pode ou que é impedida de ser exercida no simples ato de andar e conhecer sua cidade. Esse, enfim, é um direito cidadão que civiliza e que permite que diferentes se encontrem, se respeitem, convivam. Estes senhores públicos, que nos separam inclusive fisicamente, nos querem cada vez mais apartados, ignorantes e ignorados em nossos próprios espaços. Somos abandonados pelo nosso próprio lugar no mundo. Em Porto Alegre, parece que já o perdemos.

O macho feministo palestrinha precisa morrer.

Por alguma sorte, convivo com homens que não vomitam o quanto é bom ser homem, que viadinho tem de apanhar e fala sobre comer gente por aí. Quero dizer, com isso, que vivo com gente machista, bem, quem não?, mas, pelo menos, menos escrota. E isso é mérito meu, por saber ignorar pessoas nojentas.

Gosto da metáfora da Manuela D’Ávila sobre o machismo ser uma piscina de diferentes profundidades: todo mundo está lá, mas uns molham só os pés, outros se afogam. Claro que gosto de pensar que estou só molhando os pés e ando com os próximos a mim.

Considerando minha prerrogativa, tenho tido especial  falta de paciência com alguns homens feministos. Não vou abordar se de direita ou de esquerda, porque em alguma medida essa régua não serve de parâmetro aqui (às vezes, até sim). O macho feministo palestrinha gosta de dizer que é o cara pela igualdade de gênero, que domina o jargão, que lava louça e que limpa banheiro (quase batendo no peito e causando comoção em boa parte das mulheres). Tudo isso para pedir biscoito. O palestrinha feministo elogia sua gatinha pelo troféu que ela é — “mas eu estou admirando minha mulher por ser esse mulherão!”, ele diz.

O macho palestrinha conta como ensinou muitas coisas para sua parceira, esposa, companheira, crush. Ele ensinou muito porque ele é muito foda, ele se instrui, ele estuda, ele se informa, ele repete notícias e artigos. Como pode alguém não achar o macho palestrinha um feministo culto e interessante? E ela, sua super parceria, não sabe nada de nada, mas por ser tão boa quanto ele, aprendeu tudo, uau! Quer dizer, fica implícito que ele considera sua parceira, ou amiga, ou colega uma pessoa inferior. Ela é companheira, amiga, confidente, forte e ele aprende tudo isso com ela. Ela é especial, porque se presta a ser ensinada por esse homem que prega igualdade e acha sua companheira ótima, afinal, ela aprendeu. As qualidades outdoor (sociais e do mundo do trabalho) são “ensinadas” a ela por ele. As qualidades indoor (domésticas e afetivas) são “ensinadas” por ela a ele.

Logo, fica fácil entender que o macho feministo palestrinha é o quê, afinal? Machista. Claro. Ele exibe uma mudança de parâmetro que não existe.

Durante algum tempo, achei que tinha de dar biscoito para esses homens: “puxa, está se esforçando, pelo menos!”. Mas estou começando a achar que esse tempo (que, para mim, fazia parte da transição de mentalidade, embora chato para burro) já deu. Chega.

A gente já sabe o que é e nomeia rotineiramente gaslighting, mansplaining e manterrupting.  Nesse caso, o feministo palestrinha poderia ser considerado, segundo fontes confiáveis (duas pessoas que conversaram comigo), uma adaptação do mansplaining. Mas tenho achado que não é exatamente, porque estou falando sobre o cara que enche a boca para falar sobre igualdade usando exemplos (que ele segue, porque ele é ótimo) que não servem como exemplos: ele é o feministo perfeito em “coisas de homem” e ela é ótima em “coisas de mulher” e ele é feminista, lógico!, porque admira sua companheira. Não. Não é assim que funciona: uma banana não será azul porque eu disse que ela seria azul; em outras palavras, o cara pode dominar o jargão e, embora isso seja mais do que nada, não significa que seja feminista ou esforçado para não ser machista.

Não sei se esse não é apenas um rancinho meu sobre alguns exemplares específicos de machos fazendo o que uma pessoa próxima disse que era a mistura de mainsplaining com chatice exponencial. Talvez seja simples assim.

De toda sorte, entendo que, conforme a nossa consciência aumenta, aumenta nossa pouca tolerância para o cara que tenta, tadinho. O cara que tenta, que vomita ser um feminista, que fala publicamente sobre como faz seus relacionamentos serem de igualdade me cansou. Não dá mais. Sem tempo, irmão. Não estou podendo nem mais ouvir aluno adolescente com esse papinho.

Acho que parte da evolução e da revolução feminista está relacionada a não dar mais biscoito para macho palestrinha, esse pobre homem feministo esforçado.

O homem frágil

Essa semana aconteceram alguns bate-bocas nos espaços legislativos sobre direitos que foram protagonizados por mulheres (ei-los: 1, 2, 3, 4). O feminismo sistematizado das décadas de 1960 e 1970, organizado teórica e civilizatoriamente, permite que hoje (quase) todas as meninas do ensino médio entendam mais sobre seus corpos e suas escolhas. Mais do que isso, permite que elas possam fazer (algumas) escolhas (pelo menos). Sempre faço ressalvas entre parênteses, porque sabemos que há locais em que essas ideias não chegaram e a desigualdade social também opera no âmbito do pensamento de sociedade que pode ser difundido. De toda sorte, esses episódios dos bate-bocas foram, para mim, salutares para mostrar que o futuro é feminista, ou não será. É óbvio que estou reduzindo, porque há um montão de outros predicativos do sujeito para completar essa oração. Nesse sentido, o futuro é antirracista, ou não será; o futuro é diverso, ou não será; o futuro é LGBT, ou não será; o futuro é sustentável, ou não será; o futuro é mais solidário, ou não será. Enfim, há vários predicativos, mas o que mais me cabe, ou do que mais me aproprio para falar é sobre o feminismo. (Tu não contava com uma aulinha de gramática aqui, hein, confessa.)

Quando escrevo sobre o homem frágil — e estou falando do homem heteroafetivo, aqui, é preciso explicar — tenho de mencionar esse homem que bate-boca com essa mulher e se mostra totalmente despreparado. Esse homem que precisa encontrar outros homens para serem chamados de “destemidos e honrados” e se reforçarem no grupo, porque têm medo de chorar, de vacilar e de serem qualquer coisa fora de um script minuciosamente desenhado. É tanto medo, mas tanto medo, que eles precisam ser o Johnny Bravo, não como uma piada de desenho para crianças, mas como se fossem reais: egocêntricos, vaidosos (sobre sua aparência ou não) e inseguros. Mas nossos Johnnys precisam, ainda, rechaçar o protagonismo feminino. Eles se irritam quando são refutados por um igual, mas não conseguem se controlar quando são refutados por uma mulher — que, na sua lógica, não são suas iguais — e ficam atordoados com chiliques. Esses homens fazem piadas machistas, acham graça de qualquer coisa que deprecie outra pessoa por temáticas sexuais e estão fragilizados, especialmente, porque, de muitas maneiras, pararam no tempo, não se desenvolveram e estão apegados a qualquer coisa prototípica de papéis e não conseguem ser diferentes. Deve ser torturante. Não falo sobre os relacionamentos afetivos desses homens, porque são, em alguma medida, uma pro forma para serem heterossexuais.

Há outro tipo de homem fragilizado pelo feminismo. É o homem que aceita o feminismo e reconhece a opressão causada à mulher. Sobre esse homem, cabe falar em relacionamento heteroafetivo, porque ele gosta de estar com mulheres, mas quer ser o menos escroto possível e se modifica pela relação e pela empatia. É um homem que não precisa de pro formas, mas de relações e quer entendê-las. Ele muda perspectivas e busca mulheres feministas para se relacionar. Essas mulheres dominam o discurso e, em boa medida, são protagonistas de suas vidas. Mas, pouco a pouco, esse homem que sabe que o espaço delas tem de ser garantido, se diminui. Ela decide pelos dois, ela estabelece os parâmetros, os sonhos do casal são dela, os encaminhamentos de futuro são dela. E ele acata. A decisão de casamento, de contrato afetivo, de filhos, de compra de bens, de viagens, de tempo conjunto são decisões delAs. Com o passar do tempo, homens feministas vivem a vida que não querem, assumem papéis que nunca desejaram, assistem o destino acontecer. Os papéis de opressão se repetem, mas pela balança da vingança.

Numa perspectiva histórica, é natural que as evoluções femininas e masculinas não andassem em par, o que licita muita gente dizer que “mulheres são mais evoluídas que homens”, na atualidade. De outra forma, há quem diga que, para haver equilíbrio, tem de haver algum desajuste, e esse é precisamente tal momento. Essa é uma perspectiva que não me autorizo a aceitar, em função de que a revolução feminista está em curso e atingindo a todos. Além disso, o tanto que o feminismo é capaz de atingir é bastante pessoal e singular, ora, nunca sabemos a capacidade de uma e um feminista ser feminista do ponto de vista prático, pois isso depende da permeabilidade do princípio de equidade do ponto de vista prático e teórico. E, por fim, entendo que o machismo é de todos, fomos criados a partir dele e todos temos de combater nosso machismo diariamente. A mulher que oprime não faz porque quer e ela não é femista de propósito: ela está encontrando seu espaço a partir de um desequilíbrio que ela já conhece: um lidera e oprime, o outro obedece e é oprimido. O homem que aceita isso também o faz por lógicas afetivas e advindas da experiência pessoal: “é preciso reparar o que fizemos às mulheres“.

Numa perspectiva parcialmente análoga, vejo que se fala muito na reparação ao racismo. Essa reparação tem de ser através de práticas individuais antirracistas, é óbvio; mas me parece (estou tateando uma hipótese) que a reparação social seja mais importante, mais necessária, mais contundente e mais efetiva do que a reparação individual. O vizinho racista só pode ser punido se os operadores das leis e o sistema o condenarem, se ele sofrer algum constrangimento oportunizado pelas instituições. De outra maneira, apenas se a situação privada se tornar pública e publicizada. Em alguma medida, acho que o maior reparador do machismo tem de ser, também, as instituições e a sociedade. Nesse sentido, penso que os casais que vivem o dilema de serem mais ou menos feministas têm razão, porque o problema é, também, íntimo; porém, no meu ponto de vista, precisam entender que a maior reparação que essa mulher pode ter não é ter a chance de oprimir ser parceiro, mas de ter oportunidades sociais e públicas da mesma ordem que seu parceiro.

O homem machista frágil é um produto desejável para o machismo. Seu controle e seu comportamento delimitados e prototípicos ajudam a manter oprimidos e opressores nos seus lugares, organizam a sociedade, estabilizam status. É mais fácil viver onde cada um sabe seu papel, afinal. Mas a vida não é assim e eles têm medo toda vez que algo foge a sua lógica. As feministas, ao longo de séculos, entenderam, de maneira geral, que as diferenças são inerentes à vida; elas nos dizem que homens e mulheres podem ser mais iguais ou mais diferentes, e tudo bem. Mas o homem feminista oprimido e sua companheira opressora operam a mesma lógica machista em suas casas; eles, na verdade, são subprodutos do machismo. Explico por que “subprodutos”: os papéis definidos e a lógica estável são produtos desejáveis e esperados pelo sistema machista. A versão ao contrário — a mulher opressora e o homem oprimido — é um produto indesejado, mas interessante para o sistema machista, porque apenas vira os papéis, mas organiza oprimidos e opressores em roteiros sociais; é por isso, portanto, que estou falando em “subprodutos”. Ora, o machismo existe, dentre outros motivos, para tornar essas noções de competição e opressão legítimas na vida comum, no âmbito social e privado.

O desafio, na minha humilde opinião, é criar relações pessoais (relacionamentos afetivos de vida conjugal ou de amizade) mais iguais e fugir de estereótipos: mulheres são “assim”, homens são “assim”. Mas muito mais do que isso, acredito que seja papel dos homens todos e das mulheres todas o desenvolvimento do protagonismo pela equidade. Feminista somos todos que, com esforço, tentamos acreditar sempre no outro (@ namorad@, @ amig@, @ amante, @ espos@) como um igual, dono de sua vida, responsável por suas escolhas e com direitos de ser, de estar, de ir e vir como quiser. @ feminista (e, aqui, usar “o” ou “a” faz sentido) considera o diverso, porque sabe que o confronto de desejos e sonhos, o confronto de caminhos e decisões é parte inerente à vida e o caminho é o consenso. É por isso que o feminismo é civilizatório: pois ele obriga a conversa e a conciliação; ele aceita o litígio e as diferenças irreconciliáveis pela via do diálogo. Então, acredito que essas sejam as reais revoluções que o feminismo é capaz de realizar na vida privada. E eu chamo de revoluções não à toa: modificar isso na vida íntima é realmente uma mudança de perspectiva em todas as relações, é se tornar outra pessoa.

Nós, @s feministas — inclusive esse casal machista que declama feminismo, de que tanto falei para ilustrar — devemos lutar mais, muito mais, pelo seu aspecto social: equiparação de salários, equiparação de licenças maternidade e paternidade, segurança e justiça para vítimas, enfim, pautas que podem modificar pessoas num nível mais amplo e, essas pessoas, quando normatizarem as diferenças de gênero e entenderem que, apesar dessas diferenças, o direito a ter direitos é comum, poderão pensar numa vida privada de mais equidade, porque estarão inseridas num espaço menos desigual e não poderão pensar em oprimir sua e seu parceir@, porque isso não fará mais sentido na sociedade.

 

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Alalaô I (e Porto Alegre)

Sábado de carnaval e houve carnaval de rua por aqui (Cidade Baixa, Porto Alegre, RS, Brasil). Foi um amontoado de gente e blocos: na mesma rua, dois blocos. Os blocos têm de ser registrados na prefeitura, têm de passar por um crivo técnico (?) e precisam arrumar patrocínio, o que penso que é até ok (há problemas, mas enfim). Há algum policiamento e alguma organização. Esse “algum” não é à toa: é o suficiente para dizer que ali havia poder público (quase nada, mas havia), mas insuficiente para a limpeza do espaço, presença de um efetivo da prefeitura para serviços e disponibilidade de banheiros públicos, enfim, essas coisas que qualquer carnaval demanda.

No dia seguinte, sempre a mesma notícia: vizinhança irritada com os foliões, sujeira em todos os lugares, barulho para o moradores e o poder público não faz a mediação de nada disso. As pessoas que frequentam a CB (Cidade Baixa) no carnaval não são os frequentadores do resto do ano, ou até são frequentadores eventuais, mas essas pessoas vêm para cá por um único motivo: não tem mais nada em Porto Alegre nesse período. Não tem. Os bares, os restaurantes, os raríssimos eventos ao ar livre, enfim, tudo, tudo, tudo fecha ou não existe. Só tem a CB. Só tem carnaval na CB, no período oficial de carnaval, sábado e terça, ou seja, não pode ter carnaval no domingo e na segunda de carnaval na cidade. As outras datas do carnaval de rua são os fins de semana entre fevereiro e março, mas não no carnaval. Não sei explicar os motivos disso, desculpa.

O que essa montanha de gente que quer se divertir faz no domingo de carnaval? Vai para a CB. E na segunda de carnaval? Vai, de novo, para a CB. Mas não tem programação oficial e não pode ter carnaval, então eles vão fazer botellón (na Espanha, grupos de jovens que não têm muito poder aquisitivo e juntam dinheiro entre si para comprar bebida em mercearias e dançam e bebem na rua, a noite inteira). Veja bem, a pessoa gostaria de ir ao bar da moda, mas ele está fechado (porque tudo, tudo, tudo fecha) ou porque não tem grana para os únicos dois abertos (e caros, lógico), então fica na porta de um bar mais ou menos que está fechado, dividindo bebida barata e de péssima qualidade com os amigos, para poder se divertir. Tudo justo e certo, se o poder público existisse e regulasse isso; se organizasse os espaços e fizesse mediação com a vizinhança. Mas não faz e acha que as pessoas não vão para a rua porque não tem evento “oficial”. Claro que a gurizada que não pôde sair da cidade fica na rua e faz botellón. E é claro que a vizinhança reclama para a polícia, que vai jogar gás de madrugada nas pessoas dispersas no meio da rua, que vai causar mais baderna e, enfim, todos se ferram.

O primeiro problema é não haver poder público. Não precisa ser esperto para prever que domingo e segunda de carnaval (sem nenhuma atividade de carnaval e com as mesmas pessoas de sábado e terça na cidade) serão dias de aglomeração na CB. Mas o poder público municipal não sabe, só manda avisar que não vai ter nada. E o único poder público que fica sabendo e age, só resolve na hora que o conflito está instaurado, usando bomba de gás (de efeito moral, adoro esse nome “efeito moral”).

Há outros problemas: uma porção de adolescentes menores de idade bebendo até cair no centro da cidade é uma situação gravíssima, porque não afeta só o desconforto do vizinho, mas se configura em um crime. O poder público municipal não se mete a debater isso, embora seja de sua competência. Os adolescentes não sabem (pasmem, isso é verdade) da proibição de que menores comprem e ingiram bebida alcoólica [anedota sobre o tema: uma vez avisei para alguns alunos que a escola não participaria de festa “open bar” de formandos de ensino fundamental, porque escola pública não poderia sequer apoiar uma festa em que está implícito que haverá consumo de bebidas por menores e um aluno começou a falar grosso comigo, dizendo que os pais dele autorizavam e ele ia levar autorização e ele queria ver eu barrar isso, daí mandei ler o ECA e entender que a professora não era coleguinha dele e tals, enfim, acontece]. Não há atividade de conscientização ou blitz para barrar menores ou atividade com conselhos tutelares. A prefeitura não se importa que sejam menores, não se importa que bebam na rua de madrugada, não se importa que vão passar mal com gás. Nem se importa com a reclamação dos vizinhos. Só quem se importa com os vizinhos é a Brigada Militar (polícia).

Esse ano, um dos jeitos para resolver foi mandar quase todos os blocos para a orla (fora do carnaval, lógico, porque, como já disse, blocos de carnaval, no carnaval, só sábado e terça, e são bloquinhos pequenos, de moradores, praticamente). Não é a solução ideal, pois gentrifica (gentrificar significa criar ordenadamente segregação urbana ao “expulsar” de regiões tradicionais seus moradores) o bairro cultural e carnavalesco da cidade. A CB é berço de todos os primeiros blocos de carnaval que existiram em Porto Alegre, especialmente pela quantidade de terreiros e quilombos presentes nessa região e esse é o motivo pelo qual o carnaval na orla deveria complementar o que a CB não suporta, não o contrário, ou seja, manter na CB os blocos menores e apenas organizados pelos moradores, como está fazendo a prefeitura. Existe, nesse meio, um robusto grupo de frequentadores do carnaval da CB que não é necessariamente morador do entorno, que está vinculado ao bairro e que deveria (eu acho) se manter no bairro (vide Bloco da Laje e Bloco da Diversidade).

Eleger a orla como o ponto de carnaval (sem discussão prévia) me parece um desrespeito pela história do carnaval e da cultura na cidade. A vizinhança tem razão em muitos motivos e, em vários casos (blocos muito grandes, por exemplo), a orla pode ser a melhor saída. Mas o cerne do problema não é o carnaval, a vizinhança, o botellón. O núcleo do problema é não haver poder público para intermediar os pontos de vista durante o processo e participar só na hora de jogar bomba de gás.

No caso espanhol, alguns botellones foram proibidos. Mas as prefeituras organizaram espaços adequados para que outros pudessem surgir com segurança, atendendo os lugares frequentados pelos jovens e de fácil acesso (nossa “gestão” da prefeitura pretendia fazer isso aos sábados de madrugada no Largo Glênio Peres — como chegar até lá?). A CB é o espaço para o carnaval e para o botellón, é onde os jovens podem se encontrar mais democraticamente. O que custa atender às demandas das populações da cidade, através de diálogo e sem esse viés totalmente segregador?

ADENDO (05/03/2019, terça-feira): Estou lendo os grupos virtuais de vizinhos da Cidade Baixa e só reclamam: barulho de gurizada, barulho de bomba e barulho de banheiro químico. Pedem um bairro calmo, sem festa, sem gente na rua, em que possam “tomar chimarrão na rua com sua família” (não inventei, juro). O que fica meio perdido nessa história é que a Cidade Baixa é mais segura porque TEM gente na rua, porque TEM festa e porque TEM movimentação, ou seja, toda essa função atrai mais policiamento e mais segurança de maneira mais coletiva. Se não, seria a Auxiliadora, a Glória ou o Teresópolis sem as ruas e avenidas principais e seus moradores estariam muito mais vulneráveis. Lógico que tem de organizar a bagunça. Mas a CB é a CB por causa dessa “bagunça”. Gente chata para C#$%2LHO!

(r)evolução

Sempre que começa o período de férias, venho dar uma passada por aqui, porque escrever, para mim, exige tempo, embora os textos sejam muito pensados, muitas vezes antes de começarem a existirem. E os textos são longos, porque não é só que eu seja complexa, é que sou prolixa. Muito prolixa.

Antes de escrever, me revisito.

E, esse ano, discordei de tantos pontos de mim mesma no passado que foi muito engraçado. Engraçado, porque quando isso acontecia em outros momentos, a minha tendência era ter vergonha de mim e querer apagar tudo, afinal, a que está retratada aqui não sou mais eu.

Pela primeira vez, estou aceitando que não sou mais eu em algumas coisas. Continuo eu em outras. E não vou apagar nada, porque tudo aqui tem data e tudo bem mudar com os anos.

A mudança é a única certeza. Cada olhar vai vendo um pedaço diferente de vida. E, finalmente posso dizer a mim mesma: tudo bem.