A crise é de civilidade

Sempre vi os estadunidenses como cidadãos ignorantes. Não porque sejam pessoas burras, mas a sensação da periferia do mundo é de que — a partir do seu consumo — sua indústria cultural pode ser muito interessante ou pode ser muito rasa. E nós sabemos que a imensa maioria do que chega nas massas de lá e na periferia daqui é a cultura mais rasa. Um pouco disso se descobre através dos filmes do Michael Moore, em que a ideia deturpada de liberdade (“faço porque posso fazer“) aparece muito. Nos Simpsons e no Family Guy, a crítica ridiculariza ainda mais o jeito da sociedade se constituir nos Estados Unidos e esses são apenas os exemplos mais conhecidos.

A comparação com a erudição europeia (ou o imaginário sobre a erudição europeia) só diminui o julgamento que se tem no senso comum a respeito do cidadão médio estadunidense. Não estou falando, com isso, que o europeu médio é, necessariamente, mais inteligente; mas os acessos à cultura e a saberes universais, por exemplo, parecem ser melhor difundidos na Europa, especialmente no conjunto de países que formam o oeste europeu.

Cabe, aqui, explicar que não estou dizendo que existe uma cultura melhor e outra pior, como se pudesse qualificar isso, pois não tenho estudo suficiente de estética para debater. Mas estou debatendo o acesso geral à cultura, de modo que as pessoas possam consumir livremente (daí o apelo à liberdade, tão difundida naquela parte norte da América, faria ainda mais sentido) e não consumir apenas a cultura da indústria e do mainstream. Lógico que europeus também consomem muito o mainstream, mas tenho a impressão de que eles têm mais acesso a diversidade cultural e isso é civilizatório, porque quanto mais escolhas sobre os bens culturais, melhor para as formações individuais e coletivas de um povo.

Estou tratando de duas potências econômicas, que despejam nas periferias do mundo os produtos de suas indústrias culturais e influenciam o que será produzido nas próprias periferias. Então, apesar de, por exemplo, a música que mais se toca no Brasil seja a brasileira, ela é altamente influenciada pela produção estadunidense (não europeia, veja bem) e pelo que lá é considerado mais raso, mais simples, mais popular. Esses adjetivos em conjunto não taxam essa produção como ruim. Significa que é menos elaborado. A maior banda de rock produziu canções simples e não eram mal elaboradas, então falar sobre simples não significa dizer nem pobre, nem ruim, nem pouco elaborado. A necessidade de diversidade amplia o conhecimento e as percepções sutis e subjetivas de uma pessoa e isso, obviamente, se multiplica quando os acessos se ampliam em uma nação. Existe, por outro lado, um debate de que toda cultura está na internet e, quem quiser diversidade, basta buscar em poucos cliques. Esse argumento fala falsamente, ainda, sobre aquele discurso da liberdade como princípio, que tenho usado, aqui, como condutor do próprio valor fundamental estadunidense. Se, na internet, estamos cada vez mais relacionados às nossas bolhas, a liberdade é, portanto, falaciosa, já que o oferecimento de opções é nichado e, cada vez mais, atendem a um tipo de perfil. Em outras palavras, a liberdade seria, então, relativizada.

A ironia dessa pouca oferta de opções culturais reais e do pouco estímulo estatal à diversidade de produções culturais (essa pode ser uma afirmação errada ou incompleta, pois é baseada no que leio, escuto e vejo sobre os estadunidenses, que é restrito e parcial) se traduz um pouco nos absurdos que temos visto, ao longo desse período de pandemia, vindos dos Estados Unidos. O maior absurdo é a quantidade de pessoas que tomou desinfetante porque Trump disse que era uma opção válida. A relação da cultura com a “inteligência coletiva” de uma nação é muito íntima, pois um povo que consome culturas diversas tende a se informar mais (pois também lê, escuta músicas, frequenta espaços de arte). Então, se ser periferia econômica significa receber influência cultural direta das potências imperialistas — e, principalmente, os Estados Unidos nos mandam muitas influências, de todos os tipos –, parece que essa cultura mais rasa e simplória, esse apego por uma liberdade que não considera a sociedade e as respostas superficiais aos problemas complexos nos afeta diretamente.

Os Estados Unidos são uma potência imperialista que define sua liderança especialmente pelo viés econômico. Usa, por outro lado, artefatos culturais para que sua ideia de civilização e de sociedade, seus valores fundamentais em outras palavras, sejam absorvidos e a questão econômica pareça naturalizada. É a partir do poderio econômico que organiza seus parceiros e estabelece que tipo de dependência cada país terá de si. Além disso, do ponto de vista interno, desenvolveu um lema, que nem sempre é muito verdadeiro, que é o America first, ou seja, antes de qualquer um, a América (como se autodenominam) ou os americanos (nesse sentido, nem sempre esse ideário se sobrepõe a questões de racismo ou de desigualdade social, por exemplo, mas não é meu escopo lidar com isso). É o país mais rico, embora esse dado não fale sobre muitos outros indicadores de civilidade e evolução coletiva.

A pandemia em que estamos imersos fala muito sobre o que, então, valorizamos nesse período civilizatório. Acho que vários pontos da absorção da cultura estadunidense estão sendo coletivamente relativizados, porque o poderio imperialista econômico (e cultural, pelo menos, no ocidente, nesse momento) tem trazido especial desvantagem no manejo da pandemia. A partir desses legados culturais e de valores comuns que menciono, os Estados Unidos cometem dupla cretinice no processo: roubam equipamentos já comprados na China por outros países e leiloam esses equipamentos em território nacional, sem distribuir, por exemplo, a quem mais necessita. Os Estados Unidos, também, esticam os limites imorais das discrepâncias sociais na pandemia em vários sentidos, desde não oferecer saúde como bem fundamental (seus cidadãos que lutem, como se tem falado por aí), até a vulnerabilidade atingir completamente os desprotegidos (sua população conta com 15% de autodeclarados negros e, na taxa de mortalidade, eles representam 30% das vítimas fatais). O escândalo provocado pela salvação atribuída à cloroquina sem avaliação técnica é a cereja do bolo da sordidez que a crise viral causou nas terras de Trump, que se tornou um cínico farmacêutico de última hora. É preciso rever o modelo estadunidense de influência cultural (social e econômica, que estão subjacentes), tanto de seus produtos, como de seu ideário, pois, conforme a digressão que o presente artigo tem sugerido, a influência cultural do império contribui para os valores que as periferias também desenvolverão.

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Foto de Brad Courant, copiado das contas de Twitter identificadas. Elad Nehorai escreve “pelo menos eles estão finalmente admitindo isso” e, no carro, está escrito “sua saúde não é mais importante do que minhas liberdades!!”.

Sei que ter um país imperialista inspirador não pode ser um ideal de povo. Mas valores civilizatórios de cada nação deveriam ser moeda de intercâmbio cultural. É muito claro que, ao invés de ter um país que dita modas, valores e cultura, prefira a valorização de nossas construções coletivas e históricas, da diversidade do nosso espaço no mundo e, para além disso, que pudéssemos, então, escolher as influências culturais que aqui chegam, sob a égide do valor civilizatório e não do poderio econômico. Nesse sentido, nossa pobreza não é econômica ou subdesenvolvida, apenas. Nossa pobreza mais delicada — porque definidora de parte de nosso funcionamento social — reside em sermos um país tão rico culturalmente, mas que nega possibilidades de trocas igualmente ricas entre os povos que aqui vivem, além dos povos cuja base cultural é parecida com a nossa ou, mesmo, os que deram origem a nossa miscigenação.

Hoje, a título de exemplificação, foi mais um domingo em que gente com algum poder aquisitivo (pessoas que se sentem elite, mas apesar de estarem nesse lugar do mundo, tentam ser de outro, acreditando que é a vantagem econômica que lhes faz melhores) saiu às ruas com as bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos para defender insanamente o fim da quarentena e o fechamento dos poderes legislativo e judiciário. Seu princípio, dizem os manifestantes, a liberdade estadunidense. Esse é o retrato de nossa pobreza maior: a negação de ser pertencente a essa cultura, tão diversa e tão paradoxal, e a negação de valores universais, como o apreço à ciência e a própria liberdade como valor coletivo.

A deturpação da palavra liberdade é, para mim, um ponto fundamental. Em primeiro lugar, porque é desejo de todo ser humano (já disse a Cecília Meireles: “liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”) em contradição com a ideia da liberdade como slogan de realização estadunidense. Os contornos de liberdade que os Estados Unidos divulgam pouco se parecem aos de Meireles, mas estão circunscritos, em boa parte, ao que Michael Moore explicita: “faço porque posso e, se quero, posso“. A liberdade de consumo, como já posto, não se traduz em diversidade de artefatos culturais, mas mais em bolhas e em um gigante mainstream. O trabalho duro como valor que garante riqueza, status, saúde e bens básicos também é uma noção falaciosa da realidade da própria liberdade, já que quase todas as mesmas cem famílias ricas do fim do século XIX seguem ricas no fim do século XX, nos Estados Unidos. A liberdade dos estadunidenses não é um bem natural, nem um valor universal. É um bem construído com contornos muito mais ideológicos do que os comunistas — para opor ao liberalismo que estufa o peito desse imaginário — ou do que os anarquistas, mas vendido como um valor civilizatório.

Aos olhos estadunidenses, o resumo do valor contracivilizatório seria o exemplo cubano. A liberdade como bem, cujo desejo maior está explícito em Meireles, não parece ser, exatamente, o ponto forte do governo cubano, ainda que quase tudo que saibamos sobre a ilha de Martí seja intermediado através das lentes dos Estados Unidos. Ainda assim, nesse momento de pandemia, é Cuba que atua pela a saúde, pela vida e pela fraternidade, enviando delegações maiores ou menores de médicos para tratar o covid-19 pelo mundo. Ou seja, quem dá o exemplo de valor e civilidade é o lugar do mundo que recebeu as costas dos demais. Ora, ninguém é ingênuo de não perceber que o governo de Cuba realmente usa seus médicos como propaganda positiva e é a ferramenta possível deles, já que vários países não podem realizar comércio com a ilha. Mas o discurso que perpassa os cubanos, sempre que entrevistados individualmente, tem esse aspecto civilizatório, realmente; para eles, é um valor fundamental “não dividir o que sobra, mas dividir o que se tem”. Na vida prática, quem olha para o lado, nas potências e nas periferias, faz isso, efetivamente: com tantas inseguranças, com medo de faltar pão no fim do mês ou de o chefe não pagar o salário inteiro, divide o que tem, porque a miséria aparece sem paliativos e salta aos olhos, na pandemia. E, nós, aqui, na periferia do mundo, não podemos fingir que estamos cegos, porque os outros humanos, iguais a nós, que precisam estão, literalmente, nas nossas portas.

No mundo da pandemia, em que a potência mundial rouba dos países parceiros para aumentar a disputa no seu mercado interno e inventa mentiras que confundem os povos de todo o mundo, fora todos os demais absurdos já citados, essas noções de solidariedade e fraternidade fazem muita falta e, mais do que isso, nos permitem pensar em quais são os países a serem colocados realmente nos holofotes de exemplos a seguir em meio à crise. Redescobrir valores é uma tarefa urgente para o novo mundo pós pandemia. A periferia poderia se ajudar ou copiar os bons exemplos, mesmo os que estão entre nós. Imitar os estadunidenses não costuma ser uma boa ideia para nossa realidade local, mas, em momento de pandemia, é totalmente desaconselhado.

Não há dúvidas de que a influência estadunidense está entranhada inclusive nos nossos hábitos mais inocentes e impensados, mas tentar se desvencilhar do que é anticivilizatório, em direção ao diverso, ao tolerante, ao fraterno é uma tarefa de gerações, que deve começar por cada pessoa que acha que roubar material de EPI na pandemia é, no mínimo, obsceno. O mundo depois da quarentena será outro, como todo mundo repete. E será muito pior, com mais miseráveis, com uma crise enorme para contornar. Sem valores e sem civilidade, não iremos ao século XXII e não teremos netos.

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Escrevi esse texto enorme (ai, gente, desculpa! é sempre assim…) a partir da leitura de um artigo que li hoje, pela manhã, no El País América (AQUI). O artigo não nega problemas do governo cubano, nem no seu manejo com o prestígio internacional, mas indica uma questão importante: com tudo o que pode ser questionável na ilha, Cuba segue dando ajuda humanitária e tendo medicina excelente no país. E defende, ainda, que, nesse mundo com medo da epidemia, é precisamente disso que precisamos.

“O feminismo é o contrário da solidão” e por que Tiburi está certa

Hoje ouvi a entrevista que Manuela D’Ávila fez, na semana passada, com a Marcia Tiburi e fiquei pensando tantas coisas sobre meu feminismo, em como ainda sinto tanta dificuldade de ser mulher e na falta de paciência com homem fazendo homice. Não é de hoje que relato isso, tenho sido até meio monotemática.

Mas, durante a entrevista, fiquei viajando em dois temas, que logo explico. O primeiro ponto é o peso da cultura sobre os desejos que nós, feministas empoderadas, tomamos, ou seja, podemos ser empresárias, donas de casa, enfermeiras, ter ou não filhos, ter ou não relacionamentos e essa liberdade é ótima, mas que muitas de nós desejam os sonhos femininos do patriarcado (casar, ser mãe, exibir um homem, enfim). Não quero dizer que a gente não possa nada disso, podemos, lógico, isso e muito mais. Mas a questão é por que, justamente em função de fazer parte do imaginário da mulher ideal, nós, que refletimos tanto sobre ser mulher, nos revolucionamos tanto tantas vezes, ainda desejamos formas do patriarcado. Em outras palavras, minha dúvida é como o feminismo pode imprimir uma verdadeira ruptura com essa cultura, para que nossos desejos e opções sejam mais livres e repitam menos esses padrões. “Ah, mas a mulher pode ser mãe, se quiser, não há mal nisso”, podem me dizer. Sim, eu sei, concordo. Não estou falando da mulher, estou falando de decidir por a ou por b, dentre tantas opções, a partir de um imaginário que a cultura sempre lhe impôs, após rever e repensar sua condição. A mulher pode tudo: inclusive escolher as formas típicas do patriarcado é conquista do feminismo; mas o quanto o feminismo mexe com nosso imaginário e nossos desejos mais profundos, além de sua produtividade, é algo que ainda não sei mensurar. Fiquei pensando nisso, enfim, e posso não ter entendido nada de feminismo, desculpa, gente.

A segunda coisa que pensei ouvindo a entrevista é a frase da Marcia no livro “Feminismo em comum”, um livro simples (até trabalhei partes dele com minhas alunas), que apresenta uma síntese impressionante: o feminismo é o contrário da solidão. Não tenho muito o que explicar sobre isso, porque essa síntese resolve boa parte dos problemas que tive com o meu feminismo. E, por essa frase, vou contar uma situação bem delicada pela qual passei em abril de 2019 e acho que é importante dividir para que as pessoas entendam o que significa ser feminista e não estar só.

A Escola em que trabalho foi pichada durante um fim de semana de abril de 2019 e o fato repercutiu um monte. Vou linkar a reportagem do Sul21, porque prefiro que tu clique lá do que na Record, no SBT ou na Gaúcha. A reportagem AQUI. Muitas coisas chocaram a comunidade, além, lógico, da insegurança: muitos dizeres sobre “Suzano voltará”, em referência ao massacre da escola em Suzano, São Paulo. Mas o que mais apareceu não foi sobre Suzano e, sim, sobre misoginia. Além de ofenderem As alunAs, três professoras e o diretor foram citados, em ameaças. Uma das professoras, eu: NINA VO TE COME. Antes de qualquer coisa, fiquei decepcionadíssima com a ortografia e disse: “Não pode ter sido meu aluno!”. Entrei na Escola, na segunda-feira, indo para a sala de aula, e alguém me parou no corredor para dizer todo o incidente e o que tinham pichado sobre mim na quadra. E eu fui dar aula. Não sei como, mas fui e achei que meu lugar era aquele mesmo.

A situação toda foi super trágica, os colegas com medo, todos muito nervosos e consternados, alguns colegas, totalmente sem clima para trabalhar, tiraram licença saúde. A comunidade em que trabalho é a campeã de incidência de violência contra a mulher em Porto Alegre. E, tonta e burra, eu não tive receio de nada. Todo mundo fragilizado, dizendo que eu poderia contar com a pessoa; e eu estava feliz de ter gente ao meu lado, mas não me sentia vulnerável. Entrei em todas as salas que tinha para entrar e disse, com o peito aberto: “não posso explicar um crime, porque não fui eu a criminosa”. Não tive medo. Fui altiva o tempo todo. Claro que minha reação inicial foi ingênua e desmedida, pois ficar apreensiva e fragilizada significa, dentre outras reações naturais, senso de sobrevivência. Ao longo da semana, tive de ir à delegacia, fizemos atividades para valorizar a paz e um monte de arranjos importantes para que as crianças e suas famílias fossem acolhidas e se sentissem melhor, porque todos nós fomos violados. Isso é super importante e acho que o coletivo de professores acertou. Gostaria de salientar que a violência sofrida foi uma violação: invadem um espaço coletivo, ameaçam as pessoas que ali convivem, continuam frequentando esse espaço (não todos, mas a maioria dos agressores eram alunos).

Mas esse movimento, para mim, naquele momento, era pensado e refletido sob a ótica profissional. Pessoalmente, estava bem, tinha coragem, me senti forte. Tive de falar sobre o assunto com cuidado com minha família, que realmente temia por mim. E, por causa das reações dos que estavam preocupados, passei a ter um pouco mais de cautela e de cuidado. Em função das pessoas próximas e dos conselhos do terapeuta e da polícia, achei prudente tirar uma semana de licença e assim o fiz. Expliquei aos alunos que essa era uma medida solicitada pelos profissionais da delegacia, mas que estava bem. Meus alunos me encheram de amor. O tempo todo. Tive afeto e admiração durante o tempo todo. E me senti uma mulher mais forte. Nem todos os colegas tinham esse aporte que tive, mas eu tive e, porque tive, fiquei em pé.

Um mês depois, com a ajuda do meu amigo Dani (que trabalha no mandato da Deputada Rosário), da Polícia, do DECA, acharam os quatro meninos envolvidos no crime — algumas pessoas chamaram o incidente de vandalismo, para mim, não, é crime, sem termos paliativos. Os meninos faziam ou fazem parte do movimento jovem de uma igreja evangélica e há boatos de que lideranças dessa comunidade avacalham os professores da Escola, especialmente os que têm opiniões. Esse, sim, foi um ponto delicado para que entendesse e questionava: a) o que faz uma igreja se colocar contra uma escola?; e b) por que eu?.

Seis meses antes, organizei um seminário para debater como as eleições funcionam (setembro de 2018) e por que a democracia é importante. UM membro dessa igreja (há várias outras no bairro e apenas essa confronta a Escola) se sentiu ofendido em função de achar que eu estava doutrinando e ameaçou (no Facebook e na SMED) As professorAs da Escola. Minha chefia pediu que eu deixasse de dar esse seminário, que não tensionaria com quem fez a crítica e ficou por isso. Embora tenha ficado incomodada com a postura covarde, entendi que não seria muito prudente me colocar na berlinda, especialmente sem respaldo.

Após o incidente da pichação, dois ou três meses depois, um grupo de alunas pediu para fazer um grupo de meninas fora da aula, para que eu “ensinasse a elas a serem feministas”. E minha primeira pergunta a elas foi: “de onde tiraram que sou feminista?”, já que, após o caso das ameaças no período antes da eleição, do caso das pichações e sabendo da violência recorrente às mulheres na comunidade, quase não me manifestava abertamente a tema algum e não falava tacitamente sobre feminismo. E elas disseram que elas sabiam que eu era, porque minha postura dizia isso. Saber disso foi um aconchego sem precedente.

Toda essa história — que até parece ser de superação, mas não é, é de alguém que foi acolhida e que, por isso, acha que entende um pouco sobre o que faz e sobre onde faz — contempla um episódio de uma mulher que, por seu feminismo, não se sentiu sozinha. E, por não se sentir sozinha, teve altivez. E, por ter altivez, serviu, um pouco que seja, de exemplo.

O feminismo é civilizatório. E, por ter saído desse episódio sem dores, mas com aprendizados (e minha reação foi considerada como a única “estranha” no grupo de professores), acho que fiquei bem (não darei crédito para os anos de terapia, hahahahaha). Em todas as vezes que me perguntaram como eu me sentiria se tivesse de ficar frente a frente com qualquer um dos que cometeram o crime, sempre achei que, ao me encarar, eles mijariam as calças.

Melhor do que isso: nenhum dos quatro garotos era meu aluno; eu estava certa, desde o primeiro dia. Ou seja, meu feminismo ecoa para além das paredes das salas em que trabalho e é por causa dele que não estou só.

*** Não estou contando uma história para dizer como sou forte, porque nem sou muito. É difícil me manter em pé, sei meus limites, tropeço muito e tento lidar com isso. Estou dividindo UMA situação de fragilidade em que o suporte afetivo foi o ponto de estabilidade e colabora com a prova da tese feminista sobre solidariedade.