Não tenho uma vida instagramável

Sim, existe esse termo. Em inglês, pelo menos: INSTAGRAMMABLE. E mais: há eleição de lugares mais instagramáveis para postar fotos, por exemplo, AQUI.

Quando falo sobre solidão e tristeza na adolescência com os alunos, explico que a vida da gente está cada vez mais feliz. Mas feliz para fazer o vídeo ou a foto para postar nas redes sociais. Digo sempre que suas festas e seus encontros são, muitas vezes, entediantes e que só riem, falam alto e se animam quando aparece uma câmera. E eles sempre confirmam: é isso mesmo. A felicidade é instante para o Instagram.

 

Ano passado, desfiz meu Instagram. Comecei a usar mais o Twitter. Passei, pouco a pouco, a entender que, assim como a maioria, estava usando o Instagram para ganhar biscoito. Fazia publicações brincando com alguma coisa minha, debochando ou fazendo um texto que era mais do que uma foto e isso nunca foi compreendido. Porque o Instagram não é para isso — parece óbvio, mas não foi, para mim. Um dia, fiz uma maquiagem para sair e parecia que, intencionalmente, eu tinha usado referências sessentistas no rosto. Fiz uma foto, postei no Instagram e brinquei com as palavras e as dimensões de seus significados: “a maquiagem está vintage, antiga, ou de velha?”. Ninguém leu. Mas um monte de curtidas — linda! gata! amei! — que não tinham nada a ver com a proposta, estavam lá. Entendi, ali, que queria ser lida, não vista.

A noção de rede social foi, aos poucos, ficando mais clara na minha vida. Gosto delas, uso-as. Mas elas são sociais. E, socialmente, tenho tido vontade de publicar esse e outros textos do blogue, de manter meu ativismo e minha crítica político-social, de divulgar arte e atividades coletivas. Minha vida pessoal é outra coisa.

Há alguns dias, fiz aniversário e comemorei. Tinham cerca de cinquenta pessoas na festa, nem sabia muito como lidar com todo mundo, porque era muita gente (para mim, pelo menos) e acho que, apesar de mim, super mocoronga, deu tudo certo. Várias pessoas mandaram fotos e vídeos da festa e eu os adorei. Não publiquei nenhum e estou feliz que me mandaram registros de um dia tão feliz. Mas alguém perguntou por que não fiz uma postagem no Facebook e eu disse que a festa estava tão boa, estava um clima tão legal que a rede social não fez falta.

Tenho feito algumas coisas e tirado fotos. Tenho feito fotos afetivas, ternas, de momentos felizes e de momentos especiais. Essas fotos são compartilhadas, claro. Mando para quem gosto e quem está no meu entorno. Algumas pessoas poderiam e deveriam ter também essas fotos, mas esqueço de enviar e, pensando bem, elas têm a mim, ou deveriam saber que têm a mim, que me sinto bem mais importante do que uma imagem. A rede social não é para isso. Não tenho uma vida instagramável, não preciso de biscoito. A vida precisa de privacidade e da gente mais inteira dentro dela, cuidando dela, vivendo ela, com sua pouca preciosidade e sua alegria sem euforia. Não preciso de curtidas. Nesse mundo, cada vez mais maluco, preciso curtir.

Claro que cada pessoa faz o que quer da sua rede social. Longe de mim cagar regra para o que fazer com o seu Instagram. E exibir sua ida ao cabeleireiro, ou sua tarde na academia, ou seu fim de semana no Nordeste são opções que devem ser respeitadas. A pessoa dimensiona o que quer que os outros saibam dela e é natural que ali fiquem os melhores momentos, não o dia em que se derruba a caixa de ovos no mercado ou a entrada no ônibus às 7h da manhã. No meu caso, a rede social perdeu a graça porque não acho que minha vida seja de melhores momentos — não tinha “melhores momentos” para compartilhar — e os melhores momentos que, de fato, existem são muito particulares para serem postos numa vitrine. E assim funciona para mim; para os outros, não tenho nada a ver.

Tenho me preocupado, por outro lado, em como a rede social — mais o Instagram — dão a sensação de que a vida da pessoa é realmente sem graça. A gente vê um monte de gente feliz, eufórica, linda e maquiada e nossa vida sempre parece menos do que isso. O pior é que essa sensação não é errada; não para mim. Nossa vida é mesmo sem graça, ou há algum glamour em trabalhar um monte para conseguir esticar as pernas no fim do dia ou em pagar boleto na virada do mês? Mas a vida pode ter sentido assim, também, sendo comum, sendo igual, sendo simples. O sentido deveria ser único de quem a vive. Minha vida não pode (nem deve, nem seria certo) servir de modelo ou de exemplo para ninguém. Que cada um, portanto, ache seu jeito comum e sem graça, aprenda a amar esse seu jeito e viva bem consigo. Porque a vida é isso mesmo, não é muito mais do que isso. E que a pessoa encontre beleza, amparo e brilho no meio dessa existência simples e nada idílica, tão igual a qualquer um. Não digo, com isso, que a gente deva aceitar a mediocridade como régua, mas apreciar a vida comum, porque é a nossa. Não estou propondo passividade sobre uma existência sem graça, mas de criar sentidos que não sejam instagramáveis e moldados para apenas parecer.

A vida é mais, muito mais do que rede social. Fomentar a rede social gasta nosso tempo, dá muito trabalho e me tira da rede real, do mundo orgânico. Estou dizendo isso porque realmente gasto tempo com minhas redes sociais; mas, quando esse tempo estava relacionado à exposição pessoal, sentia que, além de gastar tempo, gastava energia e, mesmo que só recebesse “elogios”, sentia tudo um pouco vazio. A rede é social, então, é para “coisas” sociais. Estou usando diferente, agora: publico o que não é íntimo (ou até é, mas fica o tão íntimo quanto eu quero), o que é coletivo, as raivas político-sociais que gostaria que fossem compartilhadas, o que quero que leiam de mim.

Assim como Tavito e Zé Rodrix, na voz da Elis Regina, na vida que não é virtual, desejo o luxo da sensação de privacidade (o tanto que é possível, já que a privacidade não existe mais), quero uma casa no campo (e o campo pode ser esse meu entorno), “onde eu possa ficar no tamanho da paz / e tenha somente a certeza / dos limites do corpo e nada mais […] onde eu possa plantar meus amigos / meus discos e livros e nada mais“.

“Olha lá, quem acha que perder
É ser menor na vida
Olha lá, quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar
Eu que já não quero mais ser um vencedor
Levo a vida devagar pra não faltar amor”
(Marcelo Camelo)

O amor nesses tempos de cólera

O Tinder era visto da melhor maneira, por mim. Logo que soube do que se tratava, realmente pensei que fosse uma ferramenta de possibilidades de amor real e achava que fosse um aplicativo de muito impacto. Nas minhas mais esperançosas digressões, pensava que, rapidamente, mais pessoas se encontrariam e teriam amores mais racionais e mais pensados.

Minha lógica não era um erro em si. Não houve, nos últimos tempos, uma decepção do que pensava para minhas novas opiniões, propriamente. Mas, pouco a pouco, vi que minha percepção ingênua era muito rasa, não se configurava em romances melhores e não dava conta dos problemas reais dos afetos. A ferramenta aproxima pessoas, mas há alguns anos agências matrimoniais (que nome, ora!) já faziam isso e não sei se há alguma diferença nas experiências.

Comecei a compreender que não há problema no Tinder. Há problema nos afetos. E a culpa não é das pessoas que usam aplicativos, mas do capitalismo. E, nesse caso, eu que não gosto da palavra culpa, mas da palavra responsabilidade, uso culpa, mesmo. Porque a culpa que o capitalismo tem nas costas, meodeos, é sem fim.

Uma vez, fui a uma plenária em campanha política — e daí estou falando de eleição dos partidos de esquerda — e uma das pessoas que falou (camarada, parceiro, companheiro, colega, enfim) disse que o capitalismo nos tira a vida social. Depois ouvi o Saramago e o Galeano falando sobre isso também. E me intriguei com essa noção, porque eu era muito jovem. Como o capitalismo é um sistema econômico, entendia que a vida social era afetada pelo trabalho e tal. Mas as dimensões disso, e eu fui entendendo pouco a pouco, são maiores e não afetam “apenas” o mundo produtivo, o improdutivo e as dimensões afetadas pelo trabalho.

O Tinder surgiu quando o amor já tinha virado utilitarista. O Tinder não inventou nada; de certa forma, até acho que amenizou o que poderia estar um pouco pior. O capitalismo já tinha nos tirado a vida com amigos e nossos “amigos” acabavam sendo os colegas de trabalho. Nós passamos a nos gostar, principalmente, pela afinidade em fazer a produção. Essa é uma realidade que comecei a entender quando era pequena. Por causa do trabalho, minha família saía pouco, não era organizada fora da rotina trabalho-família e os assuntos, nos raríssimos encontros de amigos, era o trabalho, porque eram colegas. Conversar sobre trabalho segue sendo uma dimensão fundamental dos assuntos entre amigos, mesmo fora do ambiente laboral. Eu lia que grupos de amigos eram formados por interesses em comum, mas o “interesse em comum”, eu via, era o trabalho. E será mesmo que o trabalho é um “interesse”? E será que, entre nossos amigos, a gente não deveria, justamente, dar folga para si e esquecer o trabalho?

O trabalho, paulatinamente, foi, ironicamente, nos desorganizando coletivamente, especialmente nos ambientes mais urbanos. As associações de funcionários, mesmo aquelas cujo objetivo era ter uma sede campestre, por exemplo, foram diminuindo de quantidade e de importância. Os sindicatos — como forças de apoio ao funcionário — só seguem como entidade organizadora, significativa, de luta e de convívio em alguns setores de trabalhadores do setor público, fora uma e outra exceções. A precarização do trabalho nos separou em pequenos grupos de afinidade comum — cuja característica desse ou daquele grupo, ou da nossa “panela”, é, justamente, a forma com que encaramos a relação com o trabalho — e, fragmentados, criamos grupos de amigos, que são “colegas de trabalho” para, às vezes, tomar cerveja e desabafar. E desabafar é necessário. Em suma, é uma relação tautológica: me junto aos colegas que lidam com o trabalho como eu e uso o grupo para ter suporte para reclamações semelhantes. Claro que grupos de amigos não funcionam apenas para isso, mas funcionam, frequentemente, a partir desses parâmetros.

É claro que colegas de trabalho podem ser amigos. Devem, inclusive. Mas é muito melhor ter amigos em um espaço e colegas para pensar seu trabalho em outro. E tudo bem que esses grupos sejam formados pelas mesmas pessoas, às vezes, mas não obrigatoriamente. Mas aí tu ri. E pergunta, incrédul@: quando?? quando sair com amigos e ter um espaço?? Pois é. É isso. O capitalismo nos tira desse espaço de pensar, de lazer, de ócio, de debate, de comunhão, de compartilhar. Com isso, tira, também, o espaço de afetos, do riso, do gozo e do amor. Não à toa Deleuze diz que “o poder requer corpos tristes. O poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A alegria, portanto, é resistência porque ela não se rende. A alegria como potência de vida nos leva a lugares onde a tristeza nunca levaria“. Desde a minha infância até o início da idade adulta, via as pessoas sem muita vida social, com a vida social reduzida à família e ao seu trabalho. É, nesse sentido, culpa do capitalismo que pessoas não se encontrem, não se articulem e, para ter vida social, tenham de ficar restritas a formar uma família e se dedicarem a ela.

Bem, isso foi há algum tempo. Já não é mais.

Hoje a falta de tempo é tanta, que nem formar um par está sendo fácil. Hoje somos sucumbidos pelo trabalho e por seu pragmatismo e assumimos essa lógica na vida. Já não está fácil se relacionar; formar uma família, então, é um desafio enorme. As famílias que se formam, pode perceber ao teu redor, frequentemente são casais que trabalham muito; os que têm filhos já não têm tanta influência na educação de suas crianças e o cansaço (de tanto trabalhar) nos tira convívio e ócio. Nos tira alegria e propósito. Nossos amigos, agora, são nossos colegas e tratamos boa parte deles a partir de uma competição (que a gente considera saudável), em que desconfiamos, em que não podemos nos sentir ferrados ou traídos por eles, embora eles sejam, às vezes, nossos confidentes, porque entendem o terror e a desumanidade que estamos passando no ambiente laboral.

A inserção nas redes sociais e a necessidade de mostrar (muitas vezes, eufórica e cinicamente) como estamos bem são sintomas de como a solidão nos afeta e é indesejável. Pepe Mujica fala muito sobre isso, sobre como nos afetamos com a solidão: “A vida se vai e a pergunta é: basta gastar sua vida pagando contas, e contas, e contas? E você vai ter tempo para os afetos, para o amor, para seus filhos e amigos ou vai ser escravo do mercado? Essa é a pergunta que você tem que fazer. […] Os seres humanos são gregários, não podemos viver em solidão, vivemos em grupos sociais. Tinha razão Aristóteles quando dizia que o homem é um animal político“. Quando leio os relatos corajosos de pessoas que sofrem com a depressão, com a ansiedade ou com síndromes, por exemplo, penso em como essa sociedade, que adoece e exige que a gente se pareça sempre bem, tem o poder de piorar esses quadros de saúde e de aumentar a sensação de impotência e de estar sozinho. Quer dizer, além de trabalhar desumanamente, o capitalismo exige que a gente pareça realmente estar bem o tempo todo.

O Tinder é o utilitário para “resolver” essa solidão: a de não conseguir sair com ninguém, nem sequer alguém do trabalho. E, com alguma frequência, há pessoas que parecem não saber utilizar, pois estou segura de que há expectativas altíssimas para uma relação entre pessoas comuns, que não são uma checklist de atributos (seja para encontros sexuais, seja para encontros afetivos). Uma vida atribulada, como temos tido, em que é fácil sucumbir ao trabalho ininterruptamente, não dá espaço para amores idealistas e sinuosos. O Tinder é uma possibilidade de encontro no meio dessa vida que é casa-trabalho-casa (e alguma loucurinha para espairecer no fim de semana). O Tinder é, em alguns casos, a esperança sonhadora do ócio de fim de semana com seu par, seus gatos e/ou seus cachorros na cama do domingo. E, mais do que isso, é uma possibilidade de encaixe de requisitos de ambos os lados, sem esforço e sem trabalho (porque o trabalho não aguentamos mais).

Nunca fiz um perfil no Tinder e acho que nem sei mais como se flerta, apesar de achar bonitinho o ritual da paquera (minha experiência mais próxima é ouvir histórias adolescentes, que adoro!, e — acredite! — aos 16 eles e elas já estão desesperados por Tinder, porque sentem que precisam mostrar que não falharam em ter alguém, sentem que não podem ser solitários, sentem que flertar dá trabalho e trabalho é ruim, necessariamente ruim). E, se posso recomendar algo para alguém que deseja ter um encontro, sempre recomendo o Tinder. Não há mais flerte nos bares, nem nas festas, nem em nada. Não se conhecem mais pessoas e não há mais tentativas de aproximação pouco a pouco. Nosso tempo é escasso. Nossa relação com “ter algum trabalho” para fazer algo é ruim. A gente precisa de aplicativos para se humanizar.

Tudo isso é culpa do capitalismo. O capitalismo nos tira a vida, não apenas nos matando, mas tirando os brilhos possíveis da existência. O capitalismo nos exige viver para produzir e ganhar mais para viver minimamente. Viver minimamente deveria vir sem esforço. Deveria ser o normal, o comum, o básico. Tudo que eu queria era poder viver uma vida comum sem esforço, ter mais tempo livre, ter uma rotina mais leve e não viver para pagar boleto. O Tinder (e seus assemelhados, é lógico) é um depósito de esperança de gente que quer ser um pouco mais gente. E tu pensa: tá, Nina, e o monte de macho escroto que só entra nessas redes para catar gostosa e pagar de comedor? Bem, esse é o cara que já perdeu a esperança e que deixou o capitalismo o imbecilizar (e vale para mulheres, também, só fiz uma ilustração estereotípica para fins didáticos).

O capitalismo não nos quer juntos, não nos quer amando, não nos quer rindo, não nos quer coletivos, o Deleuze, já explicou isso. O capitalismo só nos quer produzindo aquilo que não vamos poder usufruir (e isso disse o Marx). E solitários, e infelizes, para não ter ânimo para nos organizarmos e criarmos algo além dele.

 

Por que (nas redes sociais) pareço obcecada pelo problema da mobilidade urbana?

Há cinco anos, uma bigorna (metafórica, claro) caiu sobre minha cabeça. Era uma adulta (jovem adulta, para esclarecer) esquerdista (light, como se dizia à época) que vivia no bairro mais descolado da cidade e achava o debate de classes uma terminologia meio pesada, ou datada. Então, o que aconteceu? Fui chamada no concurso da Prefeitura de Porto Alegre e parei de dar aula nas escolas centrais, mantidas pelo Estado (ia trabalhar caminhando, inclusive, nem me ocorria ter um emprego em que dependesse de ônibus).

Muitas pessoas acharam que fiquei “rica”, pois professores municipais recebem um salário muito melhor do que os estaduais. Eu diria que, hoje, os municipais recebem — apenas — e discutir as diferenças das Redes (Estadual e Municipal) me interessa, mas não nesse texto, afinal, tu já leu o título e criou expectativas. Voltando ao assunto central: eu também achei que tinha ficado “rica”, porque havia um monte de outras condições de trabalho que me atraíam, além da grana.

Há cinco anos, fui trabalhar em duas periferias: Lomba do Pinheiro e Vila Nova. Fui a dois espaços que, nem de longe, são os mais conturbados da Cidade. Conhecer essas comunidades tem me permitido mudar completamente o que penso sobre quase tudo relacionado a posicionamento político, costumes, sociedade, organização dos espaços públicos. Inicialmente, não conhecia o senso de comunidade, em que eu não era uma igual aos que ali viviam, ao contrário, era hostilizada antes de qualquer coisa. E não entendia tal mecanismo. Havia uma sensação inicial super parecida a Dogville. Trabalho, desde então, com adolescentes que estão “saindo” dessas escolas, para cursar o Ensino Médio, geralmente, no centro. As escolas municipais, em Porto Alegre, se caracterizam por estarem nas periferias e oferecerem, majoritariamente, o ensino fundamental.

Logo que comecei a trabalhar nesses espaços, tive alguns passeios pedagógicos na zona central da Cidade. Bem, eu julgava, inicialmente, que os alunos não sabiam se comportar nesses eventos: teatro, ônibus, centro da cidade. Poderia compreender como uma parte significativa da classe média faz: explicar o comportamento através do desajuste. Então, famílias desorganizadas, situação de vulnerabilidade econômica, violência ao redor seriam os motivos para a “falta de comportamento”. Quantas vezes não lemos essa argumentação e repetimos essa ladainha, não é mesmo? Às vezes, repetimos essa fórmula, mesmo com boa vontade, fazendo a diferença entre nós e eles, em que nós seríamos os civilizados, no nosso esquema mental: uma pretensão, lógico. Mas, aos poucos, entendi que, para trabalhar, entrava na comunidade (que era cada vez menos hostil, por sorte), mas a comunidade não vinha até a CB (Cidade Baixa, meu bairro, onde estou, agora, escrevendo esse texto imenso). Os alunos não conheciam a cidade onde moravam (e os motivos, bem, os motivos todo mundo repete como senso comum).

Para que chegasse no horário das escolas era um inferno, pois a mobilidade não funcionava nem para mim, a garota (adorei “garota”, deixa minha síndrome de Peter Pan) da classe média, nem para as pessoas das comunidades. Nos primeiros anos, ainda, em três dias na semana, eu tinha de sair da Lomba do Pinheiro e me deslocar até a Vila Nova, durante o período do almoço, o que era extremamente desagradável pelo pouco tempo disponível. Esse foi o preciso momento em que descobri o que significava mobilidade urbana, da pior maneira, na carne. Na verdade, descobri a falta dela. Eram caronas cronometradas, ou três ônibus, se tivesse sorte. Era comum almoçar sanduíche no coletivo, quando conseguia sentar. Era cansativo começar a aula da tarde, sem ter feito intervalo decente. Para ilustrar, segue abaixo a distância entre as escolas e, para quem conhece a Cidade, pode perceber a noção da imensa dificuldade de ir de um ponto a outro, já que são bacias com comunicação quase nula (quase nula, porque houve alguma melhora com os sistemas dos Ts).

Screenshot_2020-01-31 Google Maps

O transporte era uma bosta, para mim. Mas a passagem cara, os ônibus em péssimas condições, os raros horários oferecidos eram os elementos que faziam a mobilidade urbana péssima para mim se converter em horrível a impossível para aquelas famílias que lá longe moravam. Compreendi melhor quando, em um daqueles passeios pedagógicos, os alunos disseram que foram para “Porto Alegre”. Inicialmente, achava que essa expressão se justificaria na Lomba do Pinheiro, porque o bairro, antigamente pertencente ao município de Viamão, acabou se anexando à Porto Alegre recentemente. O fato é que não demorou muito para escutar a mesma coisa (“vamos para Porto Alegre?”) na Vila Nova.

Com o tempo, passei a perguntar aos alunos do terceiro ano do ciclo C (o equivalente ao 9º ano do fundamental, nossos “formandos”, cuja idade varia entre 14 e 17 anos) quantos conheciam o centro da Cidade. Quase todos já tinham ido ao centro: desce do ônibus, faz um documento, volta para o ônibus e, assim, se perde um turno inteiro e não veem nada além disso. Descobri, ao longo do tempo que a gurizada não conhece o centro de Porto Alegre, que é comum o relato de que nunca pegaram ônibus sozinhos, mesmo os mais velhos, e que não conhecem mais de dois bairros além do seu, de origem. Não vão à praia nem ao interior, ou seja, a imensa maioria de alunos passa suas férias em casa.

Em se tratando da oferta, os ônibus, nessas comunidades, são “abundantes”, quando se considera o horário comercial da Cidade. As pessoas que vivem nas periferias passam em torno de uma hora no ônibus (moradores de bairros mais ao sul da Vila Nova podem ter viagens ao centro cuja duração pode ser de quase duas horas), o intervalo entre viagens costuma ser de, mais ou menos, 15 minutos em horários de pico e, frequentemente, algum desses ônibus “some” — o que nos obriga esperar por meia hora e não, apenas, os 15 minutos previstos. Esse parágrafo trata de muitos dados problemáticos: a) na periferia, não há muitas opções de linhas, portanto, UMA única linha, que seja a cada quinze minutos em horário de pico, leva muita gente sem conforto, de forma precária (para amenizar isso, existem algumas linhas “rápidas”, que não param em todas as paradas e funcionam, principalmente, nos horários de maior demanda); b) o tempo de demora de uma viagem da periferia para o centro desestimula conhecer o centro, ou seja, a pessoa pega o ônibus, faz o que precisa no centro (geralmente trabalho) e corre para estar de volta no seu bairro; c) fora do horário de pico, o intervalo entre as viagens costuma ser de 25-30 minutos. Toda essa informação é referente ao uso dos ônibus de segunda a sexta, durante o dia. Aos sábados, há horários “decentes” apenas até às 14h (hora de trabalhar); noites em todos os dias, sábados à tarde e domingos são uma vergonha, tratando apenas dessa questão: a oferta de viagens e o tempo de espera pelo ônibus. Em suma, os ônibus, em Porto Alegre, servem meramente para levar trabalhador ao emprego; ora, essa visão não pode nem deve ser a única função do transporte coletivo, pois, com isso, tira do cidadão o direito a conhecer, a se apropriar e a usufruir do espaço comum, que é a cidade.

O preço da passagem também interfere imensamente nessa dinâmica, é claro. A passagem de ônibus em Porto Alegre é muito cara, a mais cara entre as capitais. Para sair com três filhos e passear no Gasômetro no fim de semana, por exemplo, uma mãe da periferia gastaria quase 40 reais em passagem. É um absurdo, se pensarmos no poder aquisitivo das pessoas. Além disso, não há mais programas mensais de “passe livre”, em que um domingo por mês não havia cobrança de passagem e, tanto a gurizada, como as famílias, podiam usufruir de sua cidade. O uso de ônibus, que naturalmente prioriza o deslocamento para o trabalho e para os estudos, tornou-se instrumento cidadão para apenas esse tipo de transporte. É tão caro que pessoas não são contratadas pelo custo do deslocamento. É tão caro que alunos evadem, porque não conseguem pagar metade do valor do ônibus ao longo do mês. É tão caro que não serve para o lazer. É tão inseguro, ineficiente e incompetente que mal serve para o trabalho, de modo que a classe média está substituindo o ônibus, sempre que pode, pelo Uber (e assemelhados). Mas o que faz, então, a periferia, que precisa usar o transporte coletivo?

A periferia é tratada, de maneira geral, muito mal, em Porto Alegre. Não há cuidado com esgoto, com calçamento, com limpeza urbana, com organização nos bairros, com moradia decente, com assistência à saúde. As pessoas que vivem na periferia são tratadas como menos do que seres humanos. Sobre a mobilidade urbana, não apenas mas especialmente nas periferias, a parada de ônibus não tem iluminação. A Prefeitura mantém gramas altas e arbustos sem poda ao redor das paradas. Várias paradas não têm cobertura. A Prefeitura lançou um aplicativo para checagem de horários dos ônibus (segundo a EPTC, toda a frota da cidade tem GPS) que não funciona, ora porque o aplicativo está fora do ar, ora porque as informações do aplicativo não condizem com a realidade. Os ônibus são excessivamente antigos, barulhentos, sem cuidado e sem limpeza. A classe média que pegue Uber.

Com o tempo, passei a entender, em alguma medida, aquele comportamento dos alunos que era tão estranho, logo que fui admitida nas escolas municipais. A periferia não é sem educação. Não é agressiva. Não é “agitada”. Não sofre com algum desajuste. A periferia é maltratada. As populações que vivem longe do centro sofrem muitíssimo mais com a gentrificação. A periferia é segregada e desrespeitada. O transporte público é apenas mais uma das dimensões que contribui para essa hostilização da periferia. Esse tratamento agressivo é tão óbvio para mim, que assusta. Para o morador da periferia, por outro lado, essa dimensão cruel da mobilidade urbana é, igualmente, óbvia, mas não causa estranhamento, pois o sujeito precisa sempre reclamar da falta de água, da falta de luz, da falta de tudo, o tempo todo e ninguém lhe dá ouvidos.

Gosto de levar os alunos ao centro, para fazer o passeio do ônibus turístico e para que usufruam da cidade, num aparelho diferente e inusitado. O passeio é um serviço oferecido pela Prefeitura. Não há isenção para alunos das escolas municipais (apenas para as turmas de B10, o equivalente ao 4º ano) e, mesmo as turmas que usufruem da isenção, precisam pagar a passagem que os leve até o centro (embarque da Linha Turismo). Esse ano, para a realização desse passeio, cujo custo seria de 24 reais por aluno, fiz uma rifa. Mesmo assim, foram poucos. Porto Alegre é tão distante e desinteressante para os alunos, que uma turma de C30 (equivalente ao 9º ano) não quis fazer gratuitamente o passeio da Linha Turismo como presente de formatura. A própria Cidade não acolhe seus cidadão. A própria Cidade é inóspita. Como, há cinco anos, eu iniciaria um trabalho na comunidade desejando ter super receptividade, se tudo o que chega para aquelas populações, vindo de “Porto Alegre”, da “Prefeitura”, das “secretarias municipais”, é precário e desumano?

Essa semana, o Executivo — que não tratou da mobilidade urbana ao longo dos últimos três anos, mas facilitou o lucro das empresas que oferecem o serviço, além de precarizar, ainda mais, a empresa pública de transporte — lançou um pacote para diminuir o preço da passagem (sem afetar o lucro das empresas). Era uma mágica nunca vista. Onerava todo o resto da cidade e todos os demais serviços, mas realmente diminuiria o valor da passagem. Segundo o Sul21, “a Prefeitura diz que conseguiria reduzir em R$ 1,00 a tarifa de 2020 e, a partir de 2021, oferecer passe livre para todo trabalhador formal, passagem de no máximo R$ 2,00 para o usuário geral, passe estudantil a R$ 1,00 e isentar as empresas do vale-transporte“. O custo dessa proposta era alto e irreal. Inclusive o próprio partido do prefeito disse que havia erros imperdoáveis na condução dessas medidas: a) pouco tempo de votação na Câmara de Vereadores; b) nenhum debate sobre o pacote e seus impactos; c) elementos inconstitucionais; d) medida eleitoreira (o prefeito tem rejeição imensa) que funcionaria como chantagem (“viu? pelo menos eu tentei. eles que não votaram…”); e) apenas alguns responsáveis pela mobilidade no Governo tinham informação sobre o tal projeto. A Câmara cancelou essa votação, porque era absurda mesmo — aliás, embora a Câmara vote com o prefeito, ela tem sido o espaço para amenizar suas maldades, que sempre podem ser piores do que o que tem sido aprovado. O prefeito, tão interessado no pacote, estava no litoral, durante a votação. Sobre as medidas, nem todas eram absurdas — seu conjunto, sim, e várias merecem aprofundamento –, porém demandam tempo de debate e avaliação dos impactos na Cidade (para saber quais medidas e analisar, clica AQUI).

Desde que comecei a trabalhar para o Município, repensei a diferença absurda de classes. Embora me sinta tão “classe trabalhadora” como as pessoas com as quais convivo na comunidade, agora na Vila Nova, e aprenda com os espaços diferentes, não posso dizer que as escolhas são iguais entre nós. Pelo lugar que vivo, posso escolher o bairro que vou, com facilidade. Tenho ônibus disponíveis de quase todas as bacias e poderia ir a muitos lugares. Conheço vários bairros, sei andar na cidade. Por isso, aprendi a estar fora dela também. A população de periferia tem esse direito quase negado, pois sua locomoção é restrita e utilitária.

Há um perfil de Twitter e Facebook de que gosto muito e interajo bastante sobre o tema da mobilidade urbana, que é o MOL — Meu Ônibus Lotado. Sempre que tenho oportunidade, compartilho suas publicações, porque elas me permitem entender cada vez mais a cidadania que pode ou que é impedida de ser exercida no simples ato de andar e conhecer sua cidade. Esse, enfim, é um direito cidadão que civiliza e que permite que diferentes se encontrem, se respeitem, convivam. Estes senhores públicos, que nos separam inclusive fisicamente, nos querem cada vez mais apartados, ignorantes e ignorados em nossos próprios espaços. Somos abandonados pelo nosso próprio lugar no mundo. Em Porto Alegre, parece que já o perdemos.