A mediocridade como sucesso

Hoje minha professora de Pilates disse que sou rebelde, já que fujo das ocasiões sociais formais. E, pensando bem, fujo mesmo; não dou importância à forma.

Hoje levei uma turma para assistir ao ensaio do coro infantil da Escola. Poderia fazer um gancho com Língua Portuguesa, minha matéria, poderia falar sobre os idiomas que as crianças cantam. Não fiz nada disso, disse que tinham de ouvir música porque música é uma coisa sublime. Disse que eles mereciam música.

Esses dois exemplos ilustram uma tentativa em fazer de minha existência um tempo de significado. Obviamente sou medíocre a maior parte do tempo, mas sei lá o que acontece que fico tentando achar sentido para alguma coisa que pareça vida em mim.

Me incomoda profundamente o comportamento de manada: não que não faça, mas juro que gasto um tempo precioso da vida para não fazer por fazer. Quero uma profissão que me permita ser mais humana; quero pessoas próximas que consigam ser falhas, parceiras, honestas e bobas e que me permitam isso também; quero música; quero ler, ouvir, falar, reclamar, provocar, mudar de opinião, acolher, refutar.

Se me vejo no comportamento de manada, vou tentar deixar alguma marca de identidade ali. Não dá para fugir tanto das expectativas da sociedade, a menos que a pessoa viva bem com alguma esquizofrenia social. Não é meu objetivo, de todo modo. Sair de um extremo e ir para o outro talvez liberte a pessoa no sentido mais profundo, mas ainda me falta alguma inteligência, desprendimento e discernimento para isso.

Mas não posso ser injusta. Não é fácil ter uma vida mediana ou medíocre. E não há nada de irônico nisso. A pessoa é levada a isso, ok, por um lado, sim. Mas quem não deseja ter além de sua existência precisa fazer um esforço para ter uma vida normal. A pessoa precisa decidir em que vai se formar. E tem de ser logo. E se mudar de ideia, tudo bem, mas não gasta a grana da família com dúvidas. Nesse período, a pessoa pode ou não ter uma vida afetiva estável. Pode pegar todo mundo. Se for mulher, pode pegar evitando se expor, é melhor. Pode beber bastante e saber alguma coisa de cerveja artesanal. Pode fazer foto de jantar gourmet com vinho importado. Pode conhecer futebol americano e MMA, um pouco. Sendo mulher, pode ver uma ou outra luta ou jogo, mas melhor não opinar. Depois de se formar, pode ter um período ainda festeiro, mas não muito. Melhor ir encontrando aos poucos alguém para ficar. Os amigos começam a convidar os casais para churrasco. Não precisa se apaixonar, não precisa dividir sonhos, não precisa admirar. Pode ser uma pessoa legal, boa companhia. Então é bom que tu cresça no trabalho e consiga algo relativamente estável. E lucrativo. E exerça uma profissão aceita pelo mercado. E teus amigos vão se tornando teu network. Tu precisa mostrar que está ficando responsável, mora junto ou compra um apartamento ou te casa. Já tem carro ou dá mil explicações sensatas de por que não quis comprar um. Descobre que é hora de ter um filho. Se for mulher, explica que o desejo da maternidade é biológico: é o instinto gritando. Tem, acha lindo, ama a criança. Não entende muito bem que educar é uma bosta, cansa, dá trabalho e o retorno é mínimo. Quer só a parte do amor incondicional e delega para a escola resolver as manhas do piá. Trabalha mais e mais, é explorado mais e mais com a desculpa de que tem de dar para o piá tudo o que não teve. Faz um sacrifício para ser um infeliz numa vida que não escolheu.

E tudo isso é difícil. Quando alguém me conta sua saga, admiro muito. A pessoa está fazendo um puta esforço para aquilo que ela e todo mundo chama de sucesso.

Para nós, meninas, o percurso é levemente mais engessado do que para os meninos. Eu acho, pelo menos. Um guri festeiro, aos 30 e poucos, é ok. Não é tão ok (tem de dar conta do trabalho, tem de parecer ter senso de independência), mas há concessões. Todas as decisões que fugiram (um pouco, não muito) do script foram contestadas, quando aconteceu comigo. Quase sempre, por amigas mulheres. Amigas, isto é, pessoas de quem gosto e tenho alguma intimidade questionam que tenha sido um pouco (e um pouco, não muito) diferente do que está posto para mim. Por escolha, não por circunstância.

Quase sempre, quando tenho amigos homens e eles começam a namorar, acabo evitando-os. Geralmente é proposital. Se o amigo não quiser seguir a vida da manada, vai me procurar e continuar a ser meu amigo. E tudo bem. Se o amigo acha a vida mediana melhor, vai deixar de ser amigo, ou vai ser eventual. E tudo bem. Muitas vezes, me esforço para ser amiga da menina, para que ela perceba que posso ter como amigo seu companheiro. Esse é um exemplo bem tosco e muitíssimo reduzido da projeção que tentava explorar, é, é tosco mesmo. Mas foi, para mim, em boa medida, um esclarecimento sobre as escolhas que fazemos e não nos damos conta. Sobre a pessoa de sucesso, de responsabilidades e de poucos desejos que aos poucos vão (vamos?) se (nos?) tornando.

Quantas vezes eu mesma luto contra meus desejos para ter o conforto do comportamento de manada? Quantas vezes não tive o comportamento mediano só porque problematizei ser do contra? Quantas vezes optei pelo comportamento inesperado simplesmente porque me sentia alheia entre as opções esperadas e nem sabia escolher?

Nesse sentido, preciso ser honesta: às vezes, o que melhor podemos desejar é que a pessoa tenha uma existência medíocre, ou mediana. Não é fácil; não tem sido nem para mim, quando quero “seguir o baile”. Desejar e fazer escolhas exige alguma análise, alguma falta de maniqueísmo; exige ser (um pouco mais) sensível e decidir, de algum modo, sobre algum valor.

Para mim, a mediocridade é difícil. Confesso que muitas vezes preciso dela.

Não tenho nada contra levar a vida assim, como um script de cinema. Só acho que tudo deva fazer sentido para a pessoa que está vivendo. Só acho que a vida vivida tenha de ser uma escolha. Não é o script o problema, é encher de alma essa história. Precisamos de alguma sensibilidade, emoção, desejo, novas rotas ao longo do percurso.

Mas muitas vezes, a mediocridade é o que de melhor podemos esperar na vida de uma pessoa. É feio dizer: seja medíocre; seja mediano. Mas não deveria. Há esforço em reprimir desejos, ter uma opinião formada sobre tudo e saber o que quer de sua vida nos próximos dez anos. Bem, aqui há um pouco de ironia, sim.

 

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Meu querido diário

Nunca tive um diário. Tentei ter no início da adolescência, mas não havia nada naquele caderno que fosse “escondido” ou “secreto”, como quase tudo na minha vida, aliás.

Mas estou pensando muito nos últimos dias em como tem sido esse meu ano. Sucintamente, posso dizer assim: uma merda. Mas vou esmiuçar e expor, mesmo achando que não é importante, não vale nada mais do que uma elaboração (para mim). O texto, em última análise, é uma materialização. Talvez precise materializar para conseguir superar.

Nessa época do ano, há um ano, minha avó estava voltando do hospital a partir de um milagre. Descobrimos que ela estava tendo um AVC isquêmico importante e corria altíssimo risco de vida em função de um pneumonia. A febre dela começou na sala da emergência do hospital e esse foi o gatilho para que a cor de sua pulseirinha de triagem fosse laranja. Passei os dez dias com a vó e sua alta foi inesperada: ela voltou melhor, muito melhor do que antes de entrar no hospital. Muitos médicos falaram em milagre. Emocionada, escrevi um depoimento no Facebook de propósito, pois sabia que precisaria elaborar a morte, que estaria chegando.

O vinte de setembro do ano passado foi alívio. Fui encontrar pessoas, fui rir, fui beber e espairecer. De alguma maneira, entendi que precisaria respirar, já que estava exaurida. Os dias seguintes foram horríveis. A vó estava muito melhor, mas outra situação gravíssima estava se impondo. Uma pessoa de minha família estava há tempos sofrendo ameaças, mas, nesses dias, o teor da violência tinha agravado a um ponto que não sabíamos lidar. Tínhamos medo e pavor por nós todos. De toda sorte, tínhamos também de cuidar das pessoas mais frágeis da família.

Não estava com muito medo por mim, mas estava com aquela sensação de injustiça: o que eu, as pequenas, a vó temos com isso? Por que com a gente? Tinha entendido que precisava ser forte, que precisava olhar para frente, que não adiantaria alterar a voz. Fiquei numa frieza comigo mesma que me desumanizava. Claro, não era eu a pessoa que mais sofria; vamos ser empáticos com quem está mais ferrado, então, já que eu não era vítima de nada específico, estava envolvida pelas bordas, vivia o terror indiretamente. De todo modo, acho que fiz o que tinha de ser feito.

Com a situação se agravando mais e mais, dia a dia, houve um dia que fiz uma coisa muito estúpida e ridícula, que é tentar falar de mim, me abrir bem egoísta, dizer “que merda, estou desesperada, mesmo!” para uma pessoa querida, mas não próxima. Não queria conversar com as pessoas da família — todos mais nervosos do que eu — e não queria falar com os amigos porque tinha vergonha da situação chegar onde chegou (independentemente de não ter envolvimento direto). Claro que a pessoa que me ouviu se assustou. Claro que fui inadequada. Claro que o sigilo foi “a medias”. Claro que, acuadinha, eu não conseguia olhar adiante. Claro que tentei ser forte o quanto deu e transbordei da forma errada. Fico com pena do amigo que prestou ouvidos e só, mas enfim, essa era o que pude ser no referido momento, foi vexatório, e cada um só consegue ser o que pode.

Nesse ínterim tinha a saúde da vó. Precisava marcar médico, que era reconsulta após a alta e ficava esperando o tempo melhorar (chovia e estava friozinho, ainda), os ânimos melhorarem, todo mundo virar gente. Esse momento não aconteceu.

No início de outubro, a vó demonstrou ter compreensão de tudo que estava acontecendo, do risco que corriam, do medo que sentíamos, do terror que estávamos envoltos. Nunca falamos nada com ela. Nunca demonstramos nada a ela. Ela sabia de tudo. E nem fui capaz de lhe pedir colo. Quis ser — veja só — uma mulher forte. E ela estava ciente de tudo e nos orientou imponente.

Um dia depois, três de outubro, em torno das 18h, a vó pediu para deitar no sofá, estava cansada e queria tirar uma soneca. No fim da tarde, pouco antes, tinha começado a tossir forte (nunca sabíamos o teor das tosses da vó, fumante por setenta anos). Ela deitou, dormiu, convulsionou, entrou em coma, a ambulância não demorou sete minutos. Sem saber de nada que estava acontecendo (tudo tão rápido!) com ela, fui a sua casa sem avisar, porque achava que tinha de ir. Logo que vi a situação, chamei os filhos que estavam fora da cidade. Levei-a ao hospital. Disse a ela, desacordada, que tinha entendido, que ela havia se cansado. Tudo o que sabia, assim que falei com a plantonista: talvez AVC, mas seguramente pneumonia. De novo.

Dia quatro foi estranho. Sumimos com minha sobrinha, para que ela não visse o agravamento da situação violenta que rondava a casa. Vivi uma tarde de sonhos e diversão. Uma sandice no meio do caos. Isso até a hora da visita ao hospital, é claro. Isso até falar com um médico estúpido que disse que era grave e não tinha muito a falar.

Quarta-feira, dia cinco, fui ver a vó. Os valores de referência (já conhecia todos: pressão, oxigenação, temperatura e a porra toda) todos alterados. Eu perguntei a enfermeira o que aconteceu, por que o médico não fez isso ou aquilo e ela respondeu: “ele sabe como está, tá bom?”. Não. Não está bom. Como posso reclamar? Por que não fizeram ressonância? Onde está esse médico para eu xingar? E nada. Voltei para casa, almocei com o Dindo e a Bi, que tinham vindo de fora, e fui chamada para ir ao hospital com urgência. “Entuba ou não entuba? Não há mais nada o que fazer”. Assim, com essa cavalice que nem um equino faz.

No mesmo momento, a situação de violência tinha sido resolvida e punida. Estávamos salvos, por um lado.

A morte da vó foi questão de poucas horas.

Está tudo apaziguado agora, um ano depois. A situação não está periclitante, não há agitação e medo. Mas não há vó. E essa falta tem sido muito difícil. Não é só saudade, falta um pedaço meu. Para mim é isso: é quase uma falta física, como se fosse do meu corpo. Acho que, conforme a idade aumenta, a gente sabe lidar menos com a falta. Passamos muito tempo da nossa vida com a presença, daí a ausência se torna inexplicável, incompreensível, difícil.

Tentei desopilar nos dias que seguiram. Fiz festa, ia ao parque, saía de casa por qualquer motivo. Só me enganei. Quase todos os dias eu ia a casa da vó e, quando comecei a chegar em casa sem ter de ver a vó, um vazio me assombrava. Não era solidão. Não era incômodo. Era falta.

Ainda chego em casa à noite e fico perdida. Entendo o fenômeno e arrumo algo para fazer. Ainda dói. Não tenho esperança de que passe, sinceramente. Acho que estou resolvendo o mais dignamente possível tudo isso, até. E a palavra “tudo” não é por acaso, porque o tamanho dessa coisa chata que a gente carrega depois da perda é imensa, quase sempre maior do que a gente.

Minha sorte é que há algo em minha personalidade que teima em ser feliz, que teima em olhar para frente; até mesmo quando não sei para onde ir. Ainda que haja muita dor, não há remorso, não há arrependimentos, não há culpa.

Talvez tentar lidar com tudo isso seja parte do pacote de ser adulto. E não sei se estou pronta ainda.

 

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Essa foto fizemos em 26/04/2015, um dia após sua festa de 90 anos. Eu estava caindo de sono, como se pode perceber…