Das desigualdades

Enquanto vivo, costumo me fazer muitas perguntas. Isso pode não ser bom, às vezes é meio catastrófico; mas viver, para mim, tem a ver com me questionar. Parece uma coisa muito linda essa de se questionar, mas geralmente não é. Juro que viver sem perguntas é melhor. Mas quem disse que eu consigo? Bosta. De novo.

Ultimamente ando pensando nos meus próprios preconceitos e, no extremo oposto aos meus preconceitos: no quanto me amo e me admiro. Peraí. Uma pessoa que se questiona deveria ser elevada, altruísta, um exemplo, não essa exibida aí. Mas isso não acontece sempre e posso garantir que se questionar tampouco é garantia de progresso. Adoro a pessoa que sou, às vezes adoro menos, mas costumo achar bem legal ser eu e, enfim, tenho admiração por algumas coisas em mim. Modéstia falsa não tem nesse blogue, não, já há muito tempo (LINK AQUI). Isso não significa dizer que pense que sou modelo para alguma coisa — NÃO SOU! — também não significa dizer que sou muito certa e muito lúcida — TAMBÉM NÃO SOU. Significa dizer apenas que estou ok na minha pele.

Cheguei aqui para dizer que essa postura não é boa sempre e que ela ainda me surpreende. Achar meu lugar no mundo, de alguma forma, me cega para algumas questões ao redor. Admirar quem me tornei por mim mesma acaba reforçando uma característica horrorosa e cínica que é a crença na meritocracia, da qual tento fugir avidamente. Às vezes, acho mesmo que tenho mérito. E esse texto é para dizer, dentre outras coisas, que erros são circunstanciais e acertos também, ou seja, há muito menos mérito do que acreditamos. Estou usando essa linha de pensamento para mostrar como funcionamos politicamente.

Politicamente? Sim. Desde o dia que inventei de pensar que sou tri, me coloco em uma situação (que pode ser moral, cultural, financeira, o que for) de elite. Só cheguei nesse ponto, na verdade, porque tive recursos. Pode ser que tenha subido alguns degraus que outras pessoas não quiseram ou sequer conseguiram, mas tive chances. Ser uma pessoa “melhor” (e o que é “melhor”, não é mesmo?) passa por ter oportunidades, recursos e chances. Alguém disse, há alguns anos, que não era para eu ficar com um colega porque ele não era “do meu nível”, referindo-se ao fato de que ele era meio galinha, eu acho (a adolescência já aconteceu há taaaaanto tempo…). Hoje estou observando o fenômeno e, honestamente, talvez eu tenha tido exemplos, explicações, chances de pensar que poderia ficar com garotos “meio galinhas”, mas não investiria em namoro, porque, sei lá, eu “merecia” coisa melhor.

Estou referindo uma situação pessoal para que todo mundo entenda onde quero chegar no “merecimento”. Todos “merecem” ser pessoas melhores, mas será que dependem exclusivamente de seu esforço? O quanto somos realmente capazes de modificar nossas rotas e conseguimos evoluir? Acho que nossa capacidade de sermos melhores parte das ferramentas de que dispomos. O que será que conseguia o colega “meio galinha”? Quais eram seus repertórios de relacionamento para ele ser “melhor”? Quem nunca teve nada, nada pode oferecer e talvez — muito provavelmente — também mereça ser feliz e viver bem.

Bem, esse é um texto político, afinal. Vamos tentar, então, materializar na ideia dos recursos financeiros essa noção de merecimento. O que uma pessoa que nada tem, que nasceu não tendo nada, que viveu sem conhecer nada, que não teve proteína para realizar sinapses, o que essa pessoa merece? Porque essa é uma concepção prévia que tenho: essa pessoa não tem nada. E passa sua vida achando que merece nada. E chama o que nós dizemos que é “nada” de “tudo”.

Com frequência me pergunto por que ainda milito e por que ainda sou de esquerda — já que tão moderada me comporto. Ultimamente, acho que sou de esquerda porque não tenho mais suportado as desigualdades. E vivo um paradoxo, pois também sei que a igualdade é uma ficção. Tenho entendido que meu pavor é o abismo social, não alguma desigualdade. Quando tivermos desigualdade, volto a pensar nisso. Mas eu sou de esquerda e milito e acredito e sofro com isso porque é pavoroso viver num mundo de abismo social. Porque eu gostaria de ter o direito de reclamar que minha vida é uma merda, mas tenho banho quente e ar condicionado. Porque eu queria dizer que sou uma mulher foda, mas tive carne e comida farta ao longo de quase toda vida, isto é, realizei sinapses.

A pessoa que pode menos do que eu não se esforçou menos. Ou melhor, pode até ter se esforçado menos, mas ela tem os mesmos direitos de ser uma pessoa tri, como eu tento ser. Ela deveria ter muito mais chances do que eu. Ela deveria se sentir muito mais foda do que eu às vezes me sinto. Quero dizer que, além de ela ter o direito de ser nutrida fisicamente, de ter direito de comer e ter saneamento básico, ela deveria ter o direito de não ser carente de nenhuma maneira. E quero dizer que desejar diminuir drasticamente a desigualdade é formar uma sociedade melhor, porque quem come realiza sinapses e pensa em si e pode ser uma pessoa melhor.

A desigualdade — ou melhor, o abismo — social é nossa maior chaga como país, como civilização. Essa mácula faz alguns de nós acreditarem que são melhores, têm mais méritos, deveriam ter mais sucesso do que outros. A imensa desigualdade social produz pessoas ricas em dinheiro que reclamam da falta de conforto e, essas mesmas pessoas, acabam sendo pobres de espírito: acreditando numa direita burra ou gananciosa contra o povo. Eu continuo sendo de esquerda, mesmo sabendo que muitas revoluções devem acontecer dentro de mim, ainda. Continuo de esquerda porque tento ser solidária e porque sinto que esse “merecimento” dos que nada têm é uma desculpa para o desumano e para a barbárie.

É prepotente dizer isso, mas tive oportunidades de pensar sobre e hoje acho que luto, mesmo, assim como tantos antes de mim e ao meu lado, “pelo belo, pelo justo e pelo melhor do mundo”, que poderia ser chamado de “luta pela civilidade” e “pela humanização das pessoas”. Alguns vão dizer que isso não é ser “de esquerda”, mas nesse mundo louco que estamos, é sim — não é a direita que está defendendo o ser humano e não há, nesse momento histórico, “direita progressista”, por exemplo, para que a gente tivesse condições de dialogar ou, até, de relativizar o papel fundamental da esquerda.

Continuo à esquerda. (E como dizem os companheiros, os camaradas e os coleguinhas — porque não tenho nomenclatura, mesmo:) Seguimos.

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Los que comen bien, duermen bien y tienen buenas casas, posiblemente piensen que el Gobierno gasta demasiado en políticas sociales.” Pepe Mujica

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“Bella ciao” não é à toa.

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A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” Eduardo Galeano citando Fernando Birri
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