“Horizontes”

Nasci em Porto Alegre, mas fui muito cedo morar em São Paulo. Voltamos e eu, com sete anos,  já comemorava que estava de volta ao lar. Porque minha família próxima estava aqui e aqui achava que eu era eu (sei que é difícil nomear essa sensação de pertencimento tão jovenzinha, mas é isso).

Voltei num momento em que a cidade estava, de alguma forma, recomeçando. Era uma das primeiras experiências do PT nas capitais (vivi a da Erundina em São Paulo e, mesmo bem pequena, me lembro e lembro o boicote que ela tinha para governar) e foi tão bem sucedida que as governanças se repetiram. A cidade como um coletivo estava me recebendo, não apenas minha família.

Na escola, aprendi a canção “Horizontes” (“Há muito tempo que ando / nas ruas de um Porto não muito Alegre / e que, no entanto, me traz encantos / e um pôr-de-sol me traduz em versos“) e estava muito feliz por não ter vivido esses tempos ruins aí da música. Achava, honestamente, que tínhamos aprendido a ser felizes, porque a cidade me dava muito. Ia ao parque, tinha escola boa, íamos a vários shows regionais e nacionais grátis, minha família tinha suporte — o que meu pai, paulista, chamava de “gente demais se metendo na nossa vida” era uma base sólida de apoio e de amor que eu adorava entre os “gaúchos”. Meus irmãos, paulistas de nascimento, achavam lindo ser gaúchos. Não tenho muito saudosismo e não vejo minha vida infantil muito boa, na verdade (devo confessar que, pessoalmente, nunca fui tão feliz como sou agora; minha infância, em função dos conflitos com meu pai e da dificuldade de minha família administrar isso, foi uma bosta), mas a cidade, ah, a cidade era melhor.

Na adolescência, fiz muitas atividades de graça. A guria sem grana para trocar o único sapato furado fazia cursos de teatro, lia os autores da cidade, frequentava diversos espaços nos dias de passe livre, conhecia os museus, assistia shows, participava dos eventos na Feira do Livro, conversava com estrangeiros e abria sua mente nos Fóruns Sociais. Essa guria usufruía da cidade que a prefeitura dava. Elogiava, ufanista, sua cidade. Queria que todo mundo viesse morar aqui, porque a cidade estava se abrindo, tinha atividades e estava se ampliando. Participei de formações nos Fóruns de Educação e vi grandes pensadores mundiais (Saramago e Galeano discutindo “utopia”, por exemplo: olha o luxo!) sem gastar mais do que a passagem (a verdade é que onde eu morava ajudava muito, porque muitas atividades eram no “pátio de casa”, no Parque da Redenção, e eu sequer gastava a passagem).

Os governos do PT se esgotaram politicamente: não ofereceram novidades, as pessoas estavam acostumadas com vários direitos (e, logicamente, queriam mais), a crise financeira de repasses da União tinha iniciado e o nome de José Fogaça — que estava associado ao centro-esquerda — era visto como pouca mudança: “ele vai agregar ao que já temos”. Em alguma medida, essa mudança de rota não foi horrível, mas os espaços começaram a diminuir. A iniciativa privada estava bancando outro modelo de governança e ele tinha de devolver o investimento de campanha, ainda que aos poucos. Foi o que aconteceu. Em nome da “modernidade de gestão”, os espaços foram diminuindo e a cidade estava menor para nós, os cidadãos, a cada novo pleito.

Eu continuava iludida, porque achava que, sei lá, os espaços deveriam seguir existindo, talvez só fosse eu que não usasse mais. Não fui só eu a iludida, claro. Aos poucos fui percebendo que aquele espírito de solidariedade, civilidade e abertura estava se perdendo. Eu ainda dizia para meus amigos: “vem morar aqui, é bom! mas nós, gaúchos, nem sempre somos, veja bem, os mais hospitaleiros… ah, a cidade compensa!“. Uma prefeitura que não se importava com o desenvolvimento do cidadão em todos os bairros, de forma integrada, estava criando nichos. E, em algum momento, percebi que passei a ter vergonha de andar no Moinhos de Vento, por exemplo, porque era pobre.

A prefeitura foi desenvolvendo uma gestão, não um governo. As atividades pararam de serem criadas. Às vezes, casos como som alto em espaço público (a vizinhança reclamava, o espaço era inadequado) gerava um conflito que precisaria ser negociado; bem, mas isso é típico de uma cidade. E, aos poucos, então, tudo o que gerava discordância era minimamente mediado, mas a decisão, com maior ou menor demora, acabava sendo: “tá, vamos tirar esse evento daí, essa atividade daí, essa cultura daí, porque o cidadão está sendo afetado e está reclamando”. O cidadão, nessa perspectiva, passou a ser um cliente que tem de ser servido, afinal paga IPTU e a prefeitura tem de devolver serviço. Veja bem, essa não é uma leitura totalmente equivocada, mas mais do que agradar seus “clientes”, a prefeitura deveria fomentar que a cidade dê mais a todos os que nela vivem, mediando, negociando, ousando, regulamentando. Assim, a cultura foi pouco a pouco sendo delimitada, os espaços de convivência diminuíram e as diferenças da cidade não se viam mais, estavam cada vez mais nichadas.

De toda sorte, ainda havia respiros. A prefeitura ainda geria. Ainda fazia algum governo. Não do jeito que eu e mais um monte de gente acha certo, mas fazia. Agora, não. Agora fomos tomados pelo ranço. Fomos tomados pelo: “não tem dinheiro“, “não vamos fazer nada“, “tá incomodando, vamos acabar” — uma gestão à moda Rogerinho do Ingá [LINK] e [LINK], aliás, o personagem é bem mais tranquilo do que o destempero do “gestor”. Não há governo e isso não é incompetência, é projeto. Diminuir a prefeitura e sua atuação é o compromisso desse “governo”. O negócio de gerir, dentro dessa lógica, é dar apenas os serviços mínimos da forma mais mínima e barata possível, porque não há dinheiro. Governar uma cidade passou significar rifar esse espaço, fazer caixa indevidamente e bradar (quase que doentiamente) que não há recursos — mesmo com aumento significativo de arrecadação. Volto a dizer, pode parecer preguiça do município; não é, é projeto. A falta de zeladoria, a não comunicação com o cidadão (percebe que nem “cliente” o cidadão é mais?), o desrespeito com os mais pobres, o abandono das periferias, o descumprimento deliberado das leis, o aumento da população de rua, a manutenção de buracos nas vias, a negação de comida para as crianças da creche são só os exemplos mais grosseiros que aparecem no jornal — eles não estão apaziguados nem com a mídia local, que é, ainda, sua assessoria de imprensa mais fiel. A gente está saindo de uma gestão antipática com alguns setores para uma gestão que é ruim, é malvada, é canalha com a pessoa que mora em Porto Alegre.

Há duas semanas, acompanho uma briga da vizinhança do meu bairro — Cidade Baixa (CB), o bairro mais boêmio da cidade — com os blocos de carnaval. Os moradores reclamam da sujeira deixada pelos foliões e os estabelecimentos comerciais não querem aceitar “gente desse nível” em seus espaços. A periferia perdeu o carnaval. Perdeu, perdeu, mesmo. A prefeitura acabou com o desfile das escolas de samba de Porto Alegre. As tradicionais muambas já não vão acontecer. Não tem mais nada ocorrendo nos projetos de descentralização. Sobrou a CB. E nessas circunstâncias, com ou sem carnaval descentralizado: que venham para a CB. Esse virou o único espaço de carnaval da cidade, claro que as pessoas vão vir para cá. E, com isso, é lógico que mudou o público. Essas pessoas ficaram sem espaço e têm de ocupar a cidade que é delas. Nos anos anteriores, houve combinações prévias, reclamações dos moradores, apoio e patrocínio da prefeitura (com contrapartidas dos blocos, também), mas houve mediação e alguma negociação para que o carnaval acontecesse. Com reclamações (em muito maior escala do que nos anos anteriores, que sejamos justos), houve carnaval. Esse ano, está um caos. Entendo os moradores que reclamam da sujeira excessiva, da falta de dispersão, do barulho. Mas agora a prefeitura cobra patrocínio externo para os blocos passarem, os blocos passam e acabou. A parte de gerir a segurança, a limpeza e a organização do ambiente fica com ninguém; ou alguém acha que tem poder público na folia? O bloco, cliente desse (des)governo, fez a parte dele e lava as mãos. Nada mais é coletivo, o espaço não é de todos; embora, na hora da festa do bloco, pareça cinicamente que a rua é de todos. E a vizinhança fica puta. Essa (falta de) gestão do município deseja que o caos tome conta. E logo, logo, o carnaval da CB vai acabar, porque dá muito problema. E eles não vão precisar mais trabalhar e se incomodar. E quem tiver vontade de se divertir no carnaval que fuja da cidade — a verdade é que muita gente já faz isso há algum tempo. Nesse pensamento de gestão, não precisa ter convivência, não precisa de atividades coletivas. Quem não pode pagar, que não tenha. E não reclame. E não resista. E não mije no chão mesmo não havendo banheiros químicos suficientes e a festa dure cinco horas.

Essa alegoria que contei, tendo como pano de fundo o carnaval da CB, pode ser replicada para a Educação. Para a Saúde. Para a limpeza de bueiros. Para a Assistência Social. Para a mobilidade urbana. Para a festa do Ano Novo — que não existe mais e ninguém mais passa a virada em Porto Alegre (só eu, trancada em casa, porque me pélo de medo de sair nesses dias). O jeito “novo” de governar — que é, na verdade, dar de ombros à sociedade — está sendo aplicado igualmente em todas as demandas da cidade, não é fato isolado do carnaval. Estamos tão abandonados que não somos mais clientes. Nesse caso, não dá nem para dizer que alguém se beneficia, que a elite se mantém intacta. Até eles se fodem; mas menos, porque não dependem do fomento da governança local para se constituírem.

Percebe que não estou pedindo novos atrativos, geração de turismo, novidades culturais, cursos acessíveis? Não é essa nossa demanda atual. Mas deveria, porque deveríamos e merecemos ter mais. Nesse momento, estamos solicitando que devolvam nossa cidade. Que não tratem o cidadão com migalhas. Por isso, repito outra vez mais: ferrar o cidadão e tratá-lo com maldade é o projeto de governo.

No meu caso, estou ferrada duplamente, como municipária e como cidadã, que não foi embora dessa cidade porque tem aquela família do início do texto que dá suporte e amor e, também, porque já me fixei por aqui. Mas não quero que nenhum amigo venha morar aqui, não. Amo vocês e, por isso, fujam. Está uma merda, mesmo. Estou vivendo a época ruim da canção “Horizontes”. Estou sendo (os municipários em geral, mas pessoalizo, porque é assim que nos sentimos) tratada como grande culpada pelas finanças municipais e, se vissem em que condições (desde que entro no ônibus antes das sete da manhã, até chegar em casa à noite) vou trabalhar, iam dizer que, além de receber salário em dia, deveria ser indenizada mensalmente.

Queria escrever aqui que falta um governo municipal de esquerda, mas não. Faltam vários. Mas falta principalmente um governo. O que essa gente está fazendo contra a cidade é, literalmente, criminoso. Uma gestão não vai consertar quase nada. De todo modo, quero minha cidade de volta, nem que seja só para andar nela normalmente. Nem que seja só para ir e voltar do trabalho e viver um pouco. Nem que seja só para tomar água da torneira — isso já foi possível em Porto Alegre. Interessante dizer que há, inclusive, partidos participantes do atual governo avacalhando a gestão atual. Quer dizer, eles não conseguem agradar nem os seus pares. Não há para quem esteja bom, só para a meia dúzia que critica a falta de dinheiro do Paço — parece que seu trabalho é esse: reclamar doentiamente das impossibilidades do presente e gritar ensandecidos que não são culpados pelo passado.

Aquele meu ufanismo do início do texto era infantil e bobo, mas era melhor do que essa vergonha pela qual estamos passando. “Horizontes” (Flávio Bicca Rocha) parece que vai ficando atual, de novo. Meu arremedo de paródia, para a atualidade, poderia ser assim: “Dois mil e quatro, dois mil e seis / Dois mil e dezoito, um mau tempo talvez / Os anos dez, não deram pra ti / E, nos anos vinte, eu não vou me perder por aí”.

Juro, vou tentar não me perder e não perder mais ninguém por aí.