O homem frágil

Essa semana aconteceram alguns bate-bocas nos espaços legislativos sobre direitos que foram protagonizados por mulheres (ei-los: 1, 2, 3, 4). O feminismo sistematizado das décadas de 1960 e 1970, organizado teórica e civilizatoriamente, permite que hoje (quase) todas as meninas do ensino médio entendam mais sobre seus corpos e suas escolhas. Mais do que isso, permite que elas possam fazer (algumas) escolhas (pelo menos). Sempre faço ressalvas entre parênteses, porque sabemos que há locais em que essas ideias não chegaram e a desigualdade social também opera no âmbito do pensamento de sociedade que pode ser difundido. De toda sorte, esses episódios dos bate-bocas foram, para mim, salutares para mostrar que o futuro é feminista, ou não será. É óbvio que estou reduzindo, porque há um montão de outros predicativos do sujeito para completar essa oração. Nesse sentido, o futuro é antirracista, ou não será; o futuro é diverso, ou não será; o futuro é LGBT, ou não será; o futuro é sustentável, ou não será; o futuro é mais solidário, ou não será. Enfim, há vários predicativos, mas o que mais me cabe, ou do que mais me aproprio para falar é sobre o feminismo. (Tu não contava com uma aulinha de gramática aqui, hein, confessa.)

Quando escrevo sobre o homem frágil — e estou falando do homem heteroafetivo, aqui, é preciso explicar — tenho de mencionar esse homem que bate-boca com essa mulher e se mostra totalmente despreparado. Esse homem que precisa encontrar outros homens para serem chamados de “destemidos e honrados” e se reforçarem no grupo, porque têm medo de chorar, de vacilar e de serem qualquer coisa fora de um script minuciosamente desenhado. É tanto medo, mas tanto medo, que eles precisam ser o Johnny Bravo, não como uma piada de desenho para crianças, mas como se fossem reais: egocêntricos, vaidosos (sobre sua aparência ou não) e inseguros. Mas nossos Johnnys precisam, ainda, rechaçar o protagonismo feminino. Eles se irritam quando são refutados por um igual, mas não conseguem se controlar quando são refutados por uma mulher — que, na sua lógica, não são suas iguais — e ficam atordoados com chiliques. Esses homens fazem piadas machistas, acham graça de qualquer coisa que deprecie outra pessoa por temáticas sexuais e estão fragilizados, especialmente, porque, de muitas maneiras, pararam no tempo, não se desenvolveram e estão apegados a qualquer coisa prototípica de papéis e não conseguem ser diferentes. Deve ser torturante. Não falo sobre os relacionamentos afetivos desses homens, porque são, em alguma medida, uma pro forma para serem heterossexuais.

Há outro tipo de homem fragilizado pelo feminismo. É o homem que aceita o feminismo e reconhece a opressão causada à mulher. Sobre esse homem, cabe falar em relacionamento heteroafetivo, porque ele gosta de estar com mulheres, mas quer ser o menos escroto possível e se modifica pela relação e pela empatia. É um homem que não precisa de pro formas, mas de relações e quer entendê-las. Ele muda perspectivas e busca mulheres feministas para se relacionar. Essas mulheres dominam o discurso e, em boa medida, são protagonistas de suas vidas. Mas, pouco a pouco, esse homem que sabe que o espaço delas tem de ser garantido, se diminui. Ela decide pelos dois, ela estabelece os parâmetros, os sonhos do casal são dela, os encaminhamentos de futuro são dela. E ele acata. A decisão de casamento, de contrato afetivo, de filhos, de compra de bens, de viagens, de tempo conjunto são decisões delAs. Com o passar do tempo, homens feministas vivem a vida que não querem, assumem papéis que nunca desejaram, assistem o destino acontecer. Os papéis de opressão se repetem, mas pela balança da vingança.

Numa perspectiva histórica, é natural que as evoluções femininas e masculinas não andassem em par, o que licita muita gente dizer que “mulheres são mais evoluídas que homens”, na atualidade. De outra forma, há quem diga que, para haver equilíbrio, tem de haver algum desajuste, e esse é precisamente tal momento. Essa é uma perspectiva que não me autorizo a aceitar, em função de que a revolução feminista está em curso e atingindo a todos. Além disso, o tanto que o feminismo é capaz de atingir é bastante pessoal e singular, ora, nunca sabemos a capacidade de uma e um feminista ser feminista do ponto de vista prático, pois isso depende da permeabilidade do princípio de equidade do ponto de vista prático e teórico. E, por fim, entendo que o machismo é de todos, fomos criados a partir dele e todos temos de combater nosso machismo diariamente. A mulher que oprime não faz porque quer e ela não é femista de propósito: ela está encontrando seu espaço a partir de um desequilíbrio que ela já conhece: um lidera e oprime, o outro obedece e é oprimido. O homem que aceita isso também o faz por lógicas afetivas e advindas da experiência pessoal: “é preciso reparar o que fizemos às mulheres“.

Numa perspectiva parcialmente análoga, vejo que se fala muito na reparação ao racismo. Essa reparação tem de ser através de práticas individuais antirracistas, é óbvio; mas me parece (estou tateando uma hipótese) que a reparação social seja mais importante, mais necessária, mais contundente e mais efetiva do que a reparação individual. O vizinho racista só pode ser punido se os operadores das leis e o sistema o condenarem, se ele sofrer algum constrangimento oportunizado pelas instituições. De outra maneira, apenas se a situação privada se tornar pública e publicizada. Em alguma medida, acho que o maior reparador do machismo tem de ser, também, as instituições e a sociedade. Nesse sentido, penso que os casais que vivem o dilema de serem mais ou menos feministas têm razão, porque o problema é, também, íntimo; porém, no meu ponto de vista, precisam entender que a maior reparação que essa mulher pode ter não é ter a chance de oprimir ser parceiro, mas de ter oportunidades sociais e públicas da mesma ordem que seu parceiro.

O homem machista frágil é um produto desejável para o machismo. Seu controle e seu comportamento delimitados e prototípicos ajudam a manter oprimidos e opressores nos seus lugares, organizam a sociedade, estabilizam status. É mais fácil viver onde cada um sabe seu papel, afinal. Mas a vida não é assim e eles têm medo toda vez que algo foge a sua lógica. As feministas, ao longo de séculos, entenderam, de maneira geral, que as diferenças são inerentes à vida; elas nos dizem que homens e mulheres podem ser mais iguais ou mais diferentes, e tudo bem. Mas o homem feminista oprimido e sua companheira opressora operam a mesma lógica machista em suas casas; eles, na verdade, são subprodutos do machismo. Explico por que “subprodutos”: os papéis definidos e a lógica estável são produtos desejáveis e esperados pelo sistema machista. A versão ao contrário — a mulher opressora e o homem oprimido — é um produto indesejado, mas interessante para o sistema machista, porque apenas vira os papéis, mas organiza oprimidos e opressores em roteiros sociais; é por isso, portanto, que estou falando em “subprodutos”. Ora, o machismo existe, dentre outros motivos, para tornar essas noções de competição e opressão legítimas na vida comum, no âmbito social e privado.

O desafio, na minha humilde opinião, é criar relações pessoais (relacionamentos afetivos de vida conjugal ou de amizade) mais iguais e fugir de estereótipos: mulheres são “assim”, homens são “assim”. Mas muito mais do que isso, acredito que seja papel dos homens todos e das mulheres todas o desenvolvimento do protagonismo pela equidade. Feminista somos todos que, com esforço, tentamos acreditar sempre no outro (@ namorad@, @ amig@, @ amante, @ espos@) como um igual, dono de sua vida, responsável por suas escolhas e com direitos de ser, de estar, de ir e vir como quiser. @ feminista (e, aqui, usar “o” ou “a” faz sentido) considera o diverso, porque sabe que o confronto de desejos e sonhos, o confronto de caminhos e decisões é parte inerente à vida e o caminho é o consenso. É por isso que o feminismo é civilizatório: pois ele obriga a conversa e a conciliação; ele aceita o litígio e as diferenças irreconciliáveis pela via do diálogo. Então, acredito que essas sejam as reais revoluções que o feminismo é capaz de realizar na vida privada. E eu chamo de revoluções não à toa: modificar isso na vida íntima é realmente uma mudança de perspectiva em todas as relações, é se tornar outra pessoa.

Nós, @s feministas — inclusive esse casal machista que declama feminismo, de que tanto falei para ilustrar — devemos lutar mais, muito mais, pelo seu aspecto social: equiparação de salários, equiparação de licenças maternidade e paternidade, segurança e justiça para vítimas, enfim, pautas que podem modificar pessoas num nível mais amplo e, essas pessoas, quando normatizarem as diferenças de gênero e entenderem que, apesar dessas diferenças, o direito a ter direitos é comum, poderão pensar numa vida privada de mais equidade, porque estarão inseridas num espaço menos desigual e não poderão pensar em oprimir sua e seu parceir@, porque isso não fará mais sentido na sociedade.

 

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Alalaô I (e Porto Alegre)

Sábado de carnaval e houve carnaval de rua por aqui (Cidade Baixa, Porto Alegre, RS, Brasil). Foi um amontoado de gente e blocos: na mesma rua, dois blocos. Os blocos têm de ser registrados na prefeitura, têm de passar por um crivo técnico (?) e precisam arrumar patrocínio, o que penso que é até ok (há problemas, mas enfim). Há algum policiamento e alguma organização. Esse “algum” não é à toa: é o suficiente para dizer que ali havia poder público (quase nada, mas havia), mas insuficiente para a limpeza do espaço, presença de um efetivo da prefeitura para serviços e disponibilidade de banheiros públicos, enfim, essas coisas que qualquer carnaval demanda.

No dia seguinte, sempre a mesma notícia: vizinhança irritada com os foliões, sujeira em todos os lugares, barulho para o moradores e o poder público não faz a mediação de nada disso. As pessoas que frequentam a CB (Cidade Baixa) no carnaval não são os frequentadores do resto do ano, ou até são frequentadores eventuais, mas essas pessoas vêm para cá por um único motivo: não tem mais nada em Porto Alegre nesse período. Não tem. Os bares, os restaurantes, os raríssimos eventos ao ar livre, enfim, tudo, tudo, tudo fecha ou não existe. Só tem a CB. Só tem carnaval na CB, no período oficial de carnaval, sábado e terça, ou seja, não pode ter carnaval no domingo e na segunda de carnaval na cidade. As outras datas do carnaval de rua são os fins de semana entre fevereiro e março, mas não no carnaval. Não sei explicar os motivos disso, desculpa.

O que essa montanha de gente que quer se divertir faz no domingo de carnaval? Vai para a CB. E na segunda de carnaval? Vai, de novo, para a CB. Mas não tem programação oficial e não pode ter carnaval, então eles vão fazer botellón (na Espanha, grupos de jovens que não têm muito poder aquisitivo e juntam dinheiro entre si para comprar bebida em mercearias e dançam e bebem na rua, a noite inteira). Veja bem, a pessoa gostaria de ir ao bar da moda, mas ele está fechado (porque tudo, tudo, tudo fecha) ou porque não tem grana para os únicos dois abertos (e caros, lógico), então fica na porta de um bar mais ou menos que está fechado, dividindo bebida barata e de péssima qualidade com os amigos, para poder se divertir. Tudo justo e certo, se o poder público existisse e regulasse isso; se organizasse os espaços e fizesse mediação com a vizinhança. Mas não faz e acha que as pessoas não vão para a rua porque não tem evento “oficial”. Claro que a gurizada que não pôde sair da cidade fica na rua e faz botellón. E é claro que a vizinhança reclama para a polícia, que vai jogar gás de madrugada nas pessoas dispersas no meio da rua, que vai causar mais baderna e, enfim, todos se ferram.

O primeiro problema é não haver poder público. Não precisa ser esperto para prever que domingo e segunda de carnaval (sem nenhuma atividade de carnaval e com as mesmas pessoas de sábado e terça na cidade) serão dias de aglomeração na CB. Mas o poder público municipal não sabe, só manda avisar que não vai ter nada. E o único poder público que fica sabendo e age, só resolve na hora que o conflito está instaurado, usando bomba de gás (de efeito moral, adoro esse nome “efeito moral”).

Há outros problemas: uma porção de adolescentes menores de idade bebendo até cair no centro da cidade é uma situação gravíssima, porque não afeta só o desconforto do vizinho, mas se configura em um crime. O poder público municipal não se mete a debater isso, embora seja de sua competência. Os adolescentes não sabem (pasmem, isso é verdade) da proibição de que menores comprem e ingiram bebida alcoólica [anedota sobre o tema: uma vez avisei para alguns alunos que a escola não participaria de festa “open bar” de formandos de ensino fundamental, porque escola pública não poderia sequer apoiar uma festa em que está implícito que haverá consumo de bebidas por menores e um aluno começou a falar grosso comigo, dizendo que os pais dele autorizavam e ele ia levar autorização e ele queria ver eu barrar isso, daí mandei ler o ECA e entender que a professora não era coleguinha dele e tals, enfim, acontece]. Não há atividade de conscientização ou blitz para barrar menores ou atividade com conselhos tutelares. A prefeitura não se importa que sejam menores, não se importa que bebam na rua de madrugada, não se importa que vão passar mal com gás. Nem se importa com a reclamação dos vizinhos. Só quem se importa com os vizinhos é a Brigada Militar (polícia).

Esse ano, um dos jeitos para resolver foi mandar quase todos os blocos para a orla (fora do carnaval, lógico, porque, como já disse, blocos de carnaval, no carnaval, só sábado e terça, e são bloquinhos pequenos, de moradores, praticamente). Não é a solução ideal, pois gentrifica (gentrificar significa criar ordenadamente segregação urbana ao “expulsar” de regiões tradicionais seus moradores) o bairro cultural e carnavalesco da cidade. A CB é berço de todos os primeiros blocos de carnaval que existiram em Porto Alegre, especialmente pela quantidade de terreiros e quilombos presentes nessa região e esse é o motivo pelo qual o carnaval na orla deveria complementar o que a CB não suporta, não o contrário, ou seja, manter na CB os blocos menores e apenas organizados pelos moradores, como está fazendo a prefeitura. Existe, nesse meio, um robusto grupo de frequentadores do carnaval da CB que não é necessariamente morador do entorno, que está vinculado ao bairro e que deveria (eu acho) se manter no bairro (vide Bloco da Laje e Bloco da Diversidade).

Eleger a orla como o ponto de carnaval (sem discussão prévia) me parece um desrespeito pela história do carnaval e da cultura na cidade. A vizinhança tem razão em muitos motivos e, em vários casos (blocos muito grandes, por exemplo), a orla pode ser a melhor saída. Mas o cerne do problema não é o carnaval, a vizinhança, o botellón. O núcleo do problema é não haver poder público para intermediar os pontos de vista durante o processo e participar só na hora de jogar bomba de gás.

No caso espanhol, alguns botellones foram proibidos. Mas as prefeituras organizaram espaços adequados para que outros pudessem surgir com segurança, atendendo os lugares frequentados pelos jovens e de fácil acesso (nossa “gestão” da prefeitura pretendia fazer isso aos sábados de madrugada no Largo Glênio Peres — como chegar até lá?). A CB é o espaço para o carnaval e para o botellón, é onde os jovens podem se encontrar mais democraticamente. O que custa atender às demandas das populações da cidade, através de diálogo e sem esse viés totalmente segregador?

ADENDO (05/03/2019, terça-feira): Estou lendo os grupos virtuais de vizinhos da Cidade Baixa e só reclamam: barulho de gurizada, barulho de bomba e barulho de banheiro químico. Pedem um bairro calmo, sem festa, sem gente na rua, em que possam “tomar chimarrão na rua com sua família” (não inventei, juro). O que fica meio perdido nessa história é que a Cidade Baixa é mais segura porque TEM gente na rua, porque TEM festa e porque TEM movimentação, ou seja, toda essa função atrai mais policiamento e mais segurança de maneira mais coletiva. Se não, seria a Auxiliadora, a Glória ou o Teresópolis sem as ruas e avenidas principais e seus moradores estariam muito mais vulneráveis. Lógico que tem de organizar a bagunça. Mas a CB é a CB por causa dessa “bagunça”. Gente chata para C#$%2LHO!