Respeito?

Nós, pessoas de esquerda, temos penado nos últimos anos. Vocês sabem. Temos evitado conflitos nos nossos meios sociais e tateamos muito até saber se o amigo é sinistro e se com ele poderemos compartilhar ideias. A gente só rebate as ofensas; usa o motivo da ofensa alheia para chamar o outro de coxinha; evitamos a briga gratuita. Isso não é à toa. Funcionamos pela reação desde que nos constituímos como esquerda e — pasmem — acreditamos na diversidade do pensamento e no contraste das ideias porque sabemos que durante muito tempo os que militaram antes de nós se ferraram. Por entendermos que nosso desafeto momentâneo tem raízes profundas, evitamos o engodo. Porém, também nunca quisemos ser hegemônicos, porque sabemos que isso é falso. Todos somos assim? Não. Mas, dentro da nossa diversidade há alguma unidade, ou melhor, há pontos em comum para um número significativo de sujeitos e o espírito democrático ou radicalmente democrático (em que a democracia não seja tratada apenas como um momento que ocorre a cada dois anos, durante a eleição) perpassa quase todos nós. Enfim, queremos pobre na universidade, queremos trabalhador no aeroporto, queremos que a doméstica compre carro e queremos isso tudo porque entendemos que esse conjunto de medidas: a) é direito; b) enriquece a sociedade como um todo; c) ganham todos os envolvidos pessoalmente; d) diminui a desigualdade; e e) beneficia direta e indiretamente o país como um todo. Esses são nossos argumentos e nunca nos omitimos de discuti-los, aprimorá-los, repensá-los, conjecturá-los. Nós, diversos entre aS esquerdaS, aceitamos o debate, mas ele foi, pouco a pouco, parando de fazer sentido quando começaram a nos chamar de petralhas, defensores de corruptos e outros “apelidos” que surgiram, exatamente, para acabar com o debate. Diante desse simplismo burro, não há argumentos e silenciamos.

Tudo bem. Fomos nos resignando e resignando até demais. Denunciamos o golpe, resistimos a ele como conseguíamos, mas não sabíamos como lutar contra “o Supremo e com tudo”, como disse, profeticamente, Romero Jucá. Sua conspiração foi explicada minuciosamente em rede nacional e totalmente esquecida por quem não é “petralha” ou “defensor de corrupto”. Esse mise-en-scène do impeachment tinha um objetivo maior que é tirar Lula da eleição. É óbvio que, se Lula, o maior líder popular do mundo nesse momento, tivesse 2% nas pesquisas, sua prisão não aconteceria, já que seu processo é péssimo na sua constituição jurídica (e não adianta dizer que ele passou por muitas instâncias e por isso é correto, pois se tem uma coisa que não é imparcial no país é a “Justiça” e tu sabes disso). Lula é preso político e, de certa forma, uniu as esquerdas em nome da legalidade.

Nós, daS esquerdaS, temos essa opinião. Mas não pedimos para vocês — os contra “tudo” que está aí (que duvido que saibam definir o que é “tudo” ) — apoiarem Lula. Nunca lhes pedimos nada. Não convidamos vocês para manifestações. Não enviamos “piadas” para o grupo da família do WhatsApp em que chamam nossos antagonistas de burros ou doentes mentais (piadas? no meu tempo tinham outro nome) em nome de partido nenhum — a maioria de nós nem filiada a partido é, acredita?!?. Não pedimos defesa ao Lula. Não pedimos defesa à Dilma. Não dizemos que compre o que é considerado o melhor arroz da América Latina, o arroz produzido pelo MST. Alguns de nós pode ser mais bélico e menos tolerante. Mas a grande maioria de nós não ofende vocês. Por acreditar no espírito democrático — que vocês parecem desconhecer, dado o comportamento fascista –, não queremos silenciar vocês.

Ontem, pacificamente, Lula foi para a prisão nos braços do povo. Uma cena linda e triste, do ponto de vista do que significam nossas lutas. É o único político que representa tão bem quem nós somos que pode sair nos braços das pessoas. Ele cresceu nesse momento. Vocês nos chamam de burros e de idólatras. Na verdade, não. Nós fomos os críticos mais severos de Lula, sabemos de seus defeitos e achamos que ele e Dilma fizeram pouco, porque, para nós, tudo seria muito pouco depois de quinhentos anos de exploração. Não fomos implacáveis, pois tínhamos a solidariedade e a empatia que nosso campo político ensinou a ter, valores que os antagonistas não aprenderam, infelizmente. Lula representa um coletivo, representa a chance do povo. Uma chance que, na verdade, esse povo (ok, eu sei que tu não te consideras povo por se achar de classe média, mas tu és também) não tem, mas acredita. Lula não é um líder. Lula é uma projeção genuinamente brasileira e a projeção de vocês, infelizmente, vem de uma ficção elitista estadounidense. Tudo bem. Temos visões diferentes e sempre tivemos.

O que não dá para engolir são essas mensagens de respeito que vocês estão exigindo. Agora? Depois de nos avacalhar entre os nossos durante tanto tempo? Uma hora depois de nos ofender com suposta piada no WhatsApp pedem paz? Nesse momento, inclusive, aprendam a ter respeito na rede social e no WhatsApp, na mesa do bar e falando com o motorista de Uber. Não cobrem de nós o que nunca nos deram. Quem fez “piada” que pudesse gerar ódio foram vocês, não nos culpem pela comoção e pelo inconveniente social. Se não querem a antipatia, não poderiam semeá-la. Deveriam, por outro lado, ter respeitado seus filhos, pais, amigos e colegas que pensam diferente. Nós ainda acreditamos que as diferenças podem enriquecer, quando civilizadas. Guardem sua falta de gosto primitiva para vocês. Não falo sobre as supostas piadas à toa: elas têm sido o maior guarda-chuva dos covardes que fogem do debate, mas precisam alfinetar as esquerdas (na figura de Lula, especialmente) sem assinar embaixo. Sua covardia aparece na irresponsabilidade e na falta de inocência do “foi só um meme”, “era só uma piada”.

Não ofendo o contraditório. Nunca ofendi. Mas também não posso nutrir respeito pela discórdia, pela falta de empatia e pela própria falta de respeito. Não há como estar perto de quem não se coloca minimamente no lugar do outro, mesmo que esse outro seja um próximo muito próximo, mas divergente. Funcionamos pela reação. E nós, das esquerdas, suportamos muito antes de reagir.

 

no sufras
porque ganaremos,
ganaremos nosotros,
los más sencillos
ganaremos,
aunque tú no lo creas,
ganaremos
(Pablo Neruda, “Ode al hombre sencillo”)

 

“Artigo 5º”, de Ian Ramil