Pessoas que acham coisas sobre tudo

Uma das coisas interessantes na internet é a possibilidade de se ter opinião. Podemos ter opiniões sobre tudo, podemos refutar nossa antiga opinião, podemos ler mais e ir melhorando a perspicácia de nossa opinião. Isso é lindo.

Gosto de ler opiniões, gosto de refletir sobre o que leio, gosto de discordar educadamente, gosto de emitir opiniões também. Sou tolerante até com opiniões sem fundamentação, porque escrever a opinião — quando educada e respeitosamente, quando tem o mínimo de empatia–, obriga a pessoa a estruturar pensamento e isso, nós sabemos, não é trivial.

Obviamente, de alguém com alguma cultura (aqui como sinônimo de escolarização) a gente espera mais. Espera um discurso menos simplista, espera um pouco mais de reflexão e espera que não use rede social para emitir opinião do mesmo modo que emite no bar.

O texto escrito tem muito mais limites do que o texto falado, tem menos recursos, deve ser mais preciso — especialmente no julgamento de pessoas e situações. É muito fácil ser mal interpretado. Muito mesmo. Por isso opinar tem de ser sempre pisando em ovos, já que às vezes a gente pode ser grosseiro com uma convicção alheia que para a gente é mero detalhe. Além disso, um texto na rede social tem muito mais impacto do que numa conversa entre amigos.

Bem, enrolei o suficiente para dizer que, a medida que alguém tem escolaridade, deveria ter empatia, respeito e até humildade com sua opinião, já que hoje em dia todo mundo tem julgamento sobre tudo.

Há, contudo, uma geração (e a minha se inclui) de pessoas que pensa que “o que acha” é justo o suficiente para ser respeitado e valorizado. Em tese, parece correto, mas vamos refletir. Por exemplo, a pessoa é evangélica e é contra a teoria do Darwin. OK, sou capaz de respeitar, embora não entenda, respeito. Agora, a pessoa não apenas discorda: diz que acha uma bobagem, que nem precisariam ensinar na escola, etc. Não dá para aceitar. É Darwin. Darwin!!!! E tua opinião é de quem, mesmo? 😤 Qual teoria tu já defendeu? 😟 Ah, tá. A pessoa não se dá conta de que Darwin não deixará de ser Darwin apesar dela. A teoria dele está inteira, a opinião dela não importa a ninguém além de cinco pessoas que dão corda para ela na rede social.

Isso me aborrece.

Li essa semana mais de uma pessoa escrever que o Marx era um vagabundo, por isso o socialismo e o comunismo são pensamentos (assim, como se fossem ideias soltas) débeis e estúpidos. Por isso, segundo as “pessoas que acham coisas”, os seguidores de Marx seriam débeis e estúpidos por extensão. Vamos lá. Marx deixou teorias sociais aplicáveis e aplicadas até a atualidade. Qualquer pessoa pode discordar do enfoque, pode discordar da metodologia, da teoria, pode discordar, enfim. O que é meio infame é usar a vagabundagem do Marx para invalidar sua obra. Inclusive há vários outros intelectuais que tiveram algum comportamento reprovável e ninguém questiona suas obras. Grandes pensadores da e na atualidade ainda se baseiam em Marx para se constituírem. Por exemplo, o livro “O capital” revisitado no século XXI, do Piketti, best seller, fundamentou-se no Marx. Não gosta? Diz no teu grupo de amigos, no meio da cerveja, que Marx foi um trouxão, se assim deseja. Na rede social, seja esperto, humilde, respeitoso. Discorde e fundamente, mas não ateste burrice.

Parece que defendo o Marx como um bastião teórico que me constitui. Não é isso, mas o dano que a “pessoa que acha” causa costuma “atingir” os pensadores relacionados à esquerda e vai além: enquanto pensamos que podemos “achar” e opinar julgando moralmente grandes intelectuais, estamos desqualificando um cânone da cultura mundial, um patrimônio de saber, que nos constitui como Humanidade. Quer dizer, a pessoa pensa “vou estudar o que ‘acho’ legal e não vou conhecer nada além do que agrada minha opinião”. Esse hedonismo aparece especialmente no ranço das pessoas que se colocam contra a ideologia comumente associada à esquerda. Nunca vi ninguém ofender a honra de Adam Smith. Vi discordar, vi dizer que a teoria de Smith se constitui aqui e ali, li vários teóricos de esquerda, veja só, pautarem como evolui o pensamento social e político através de Smith. Dizer se foi um bêbado, se tratou bem a mulher, se era fofoqueiro não interessa e, se o achismo da “pessoa que acha coisas e opina” precisa julgar a partir daí, julgue a pessoa, não a teoria, como se faz com Marx, mas separe a pessoa do intelectual.

Os primeiros estudos do Comportamentalismo são superados em Psicologia, mas são um avanço à época. Sem eles o Comportamentalismo não teria evoluído e se apropriado de conceitos inclusive estranhos (inicialmente) a essa linha teórica. Alguns experimentos de John Watson, o precursor destes estudos, seriam atualmente questionáveis em vários departamentos de ética de várias universidades. Nunca vi ninguém ofender o Watson. Mas é o Marx “superado” (segundo as “pessoas que acham coisas”) e tantos outros grandes pensadores (Paulo Freire, Darcy Ribeiro, só para citar dois brasileiros de orientação sinistra), que consideraram ideologia em sua teoria, que foram rotulados como vagabundos, inaptos, toscos.

Claro, boa parte da pouca visão de quem critica reside no fato de julgar essas pessoas à luz de nossa época, que é uma bobagem (a briga sobre o escravagismo do Monteiro Lobato cabe aí: ele era escravagista? sim, era. mas a sociedade dele era e, apesar de isso ser reprovável, não o exclui do cânone historiográfico da Literatura Brasileira; ou seja, vamos dar a importância devida para o que acrescenta e para o que cabe em cada momento, embora hoje, lógico, essas ideias em sua literatura não façam mais sentido).

Daí não dá para aceitar “eu acho que”. Não dá para aguentar “discordo e não aceito”. Não é possível desqualificar a pessoa em detrimento da sua orientação ideológica. Discorde do Marx, do Engels, do Trotsky, do Castro, do Freire, da mãe, de quem quiser. Mas não seja o idiota que acha e qualifica conforme sua ótica, sua vida, sua contemporaneidade, sua civilidade. Esses autores tão cedo não passarão. Tua opinião, assim como a minha, assim como tudo escrito aqui, não acrescenta nada; exceto, talvez, numa mesa de bar. É uma opinião, só isso; uma leitura parcial, limitada, importante para o debate, mas pouco ou nada para a sombra que esses nomes fizeram na História.