Aquiles e o protesto pacífico

Aquiles é, não à toa, um exemplo exemplar de herói que persiste há milênios como mito fundamental. Nosso herói não descansou até encontrar Heitor e matá-lo, para vingar a morte de seu melhor amigo e amante, Pátroclo (aliás, que nome lindo!). Amarrou o corpo de Heitor ao seu carro e o arrastou pelo campo de batalha por nove dias.

É uma atitude sádica, mas esse episódio explica, quase concretamente, a dor do luto de alguém que amamos tanto e nos foi tirado injustamente. Daí a força de sua alegoria e a dramaticidade de sua cena. Mas Aquiles e toda sua história formam um mito.

Hoje, um Aquiles real e comum (cujo nome é Márcio), pai de um rapaz de 25 anos que teve sua vida ceifada pel@ covid-19 (nunca sei se é feminino ou masculino), homenageou seu filho e outros amores de outras famílias enquanto passava pela praia. Em Copacabana, ele viu a manifestação que uma ONG organizou, chamando atenção para as mortes causadas pelo vírus, através de cem cruzes colocadas na areia.

No meio deste protesto, um imbecil destruía e chutava as cem cruzes ali instaladas. Despejava sua fúria irracional sobre o luto de várias famílias e sobre as muitas vidas, que hoje formam a tragédia dos muitos cadáveres somados diariamente.

Nosso Aquiles, o real, viu esse homem mau chutando as cruzes e foi, uma a uma, levantá-las. O homem gritava com ele, mas ele ergueu-as por seu filho. Quem não entende Aquiles, pode passar por outro lugar, desviar das cruzes, ignorar sua atitude e chamá-lo de louco, assim como eu, muito jovem e sem entendimento desse luto evitável vindo da injustiça, o chamei, quando li o episódio da morte de Pátroclo. À época, só fui capaz de admirar o grande amor de Aquiles por Pátroclo e não percebi que o luto é uma ode à vida (que falta), que o amor é a transcendência da vida e que ele é o aspecto imortal, cuja vingança e dor foram tão contundentemente demonstradas por Aquiles.

A Humanidade e a nobreza são valores altos demais para o recalcado, são agressões atrozes para quem não consegue percebê-las, são um tapa na cara que não pode ser ignorado. O escárnio do imbecil foi chutar as cruzes, afinal, quem não tem apego e valoriza a vida, não pode respeitar a morte. Se fosse gente, ainda que fosse burro, poderia ignorar e passar ao lado. Mas o imbecil chutou cada uma das cruzes, pois precisa destruir, pois não há vida e não há amor dentro de si. Este senhor juntou seus nojos à Humanidade e, para existir, grita e ofende nosso Aquiles real, já que não vê como um igual e como um companheiro. Na sua luta vil, nem a morte e nem o luto são limites.

O imbecil não teve nem a dignidade de Heitor, que foi enganado, mas quando se deu conta de que iria para uma batalha perder — e morrer –, aceitou sua sina, porque, de alguma maneira, entendia a Humanidade do luto e da dor profunda e indizível de Aquiles.

Talvez o imbecil tenha mãe e tenha filhos. E, talvez, até diga que ame essas pessoas. Mas há um amor cheio de compaixão em ver o outro como um igual; esse amor que nos faz humanos. Esse imbecil — que precisa agredir Aquiles, porque isso o constitui –, não tem o amor humano necessário à vida, aquele amor que espera a cura do fêmur quebrado dos pré-históricos. Esse imbecil é pré-civilizatório, é dinossauro, é menos do que um trilobite.

E, por fim, Márcio é verdadeiramente, naquele momento, Aquiles, porque se tornou um herói: fez o que o melhor das pessoas deseja realizar e teve nobreza, mesmo carregando sua tragédia e sua dor. Maria Zelia Oliver, no Facebook, contribuiu para essa discussão de herói, do presente texto, acrescentando que “segundo os gregos, o maior crime de um ser humano é a ausência de compaixão. Essa incapacidade de se colocar no lugar do outro, de sentir essa dor e de respeitá-la. Nesse aspecto, essencial, os textos se tocam. O próprio Aquiles acaba tendo compaixão pelo sofrimento infinito do pai de Heitor, por não poder sepultar o filho e lhe devolve o corpo para as honras fúnebres. Compaixão, não é ‘peninha, dó, sentimento barato’. Compaixão é a prova de que se é gente”.

Acho que Aquiles é herói porque é verdadeiramente gente.

detalhe de I funerali di Patroclo, de Jacques-Louis David

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