365 perguntas

Há bastante tempo tenho notado que não passo praticamente NENHUM dia sem responder a pergunta:
— Quando tu vai ter filhos?

A verdade é que só não escuto esse tipo de pergunta nos dias que não saio de casa. Com o tempo, comecei a pensar que tinha de saber responder a essa pergunta e passei a tentar saber o que quero. Pensar sobre a maternidade é mais ou menos como pensar em religião — dadas as devidas proporções e dadas as devidas confusões –, pois, à medida que se pensa a respeito, menos tenho respostas.

No início, comecei a entender que as pessoas te perguntam esse tipo de coisa sem ter nenhuma intimidade. Perguntam sobre minha vontade de ter filhos, mas não perguntam se tenho vontade de fazer doutorado, por exemplo. E acho que perguntar sobre carreira é menos invasivo do que perguntar sobre um desejo ou projeto de vida, que, em alguns casos, pode não ser realizado e/ou independe da mulher.

A revolução sexual trouxe consigo a possibilidade do controle gestacional. Não, o controle gestacional não foi obra do advento da TV. As mulheres e os homens puderam se empoderar sobre a concepção e acho isso genial. Mulheres e homens conhecem a regra e podem manipulá-la. Pois é. Não. Na prática, muitos anos depois da liberdade sexual, mulheres manipulam a regra e homens parecem ser uns bobalhões, porque a eles nem o direito de escolher a paternidade é dado. Não estou diminuindo os homens, tampouco desconsiderando que escrevo uma generalização (que é sempre falha e não vê as particularidades), mas tento retratar como o papel masculino é dado, não como é realizado pelos homens.

O Luis Fernando Verissimo escreveu uma crônica em que ironicamente criticava o casamento gay. Não é que ele fosse contra o fato de gays casarem, mas ele diz que nos anos 1970, as vanguardas acreditavam que os gays seriam a força capaz de debochar da ideia tradicional de casamento e, com isso, romperiam alguns tabus que essa geração não conseguiu dar conta. Estamos nos anos 2010 e o casamento (ou a pompa e circunstância dele) está mais forte do que nunca, inclusive entre os gays. Para mim, o sonho do casamento é absolutamente legítimo e, diante do que temos e do que vivemos, mais legítimo ainda para os homossexuais, sobretudo se pensarmos nos direitos civis. Essa legitimidade se dá individualmente, pelos sonhos e desejos de cada um. Porém, pensando coletivamente, concordo com a linha de raciocínio do Verissimo. Sabe por quê? Porque frequentemente perguntam às garotas dos casais que vivem juntos: “e quando vocês vão casar?”, como se casados já não fossem, como se lhes faltasse algo, como se esse fosse um desejo feminino. Quem somos nós para questionar o que falta ou não em um casal ou em um amalgamado de relações? Nesse sentido, tenho percebido que, num casal heterossexual comum, o homem é a pessoa sem vontade, que (na maioria dos casos) topa fazer uma festa de casamento para realizar o sonho da mulher. Como disse o padre de uma cerimônia que eu fui, “essa é a realização de UM sonho” (o sonho da mulher).

Essas imposições e papéis ficam piores a medida em que a idade da mulher avança. Hoje em dia, na classe média, é aos 30 anos. Não importa se a pessoa tem ou não um relacionamento — e isso é bom, do ponto de vista de empoderamento feminino — ou se a pessoa está financeiramente estável. “Quando tu vai ter filhos?” Então, parece que todo o feminismo vai para o saco e o que sobra é algum primitivismo onde só constituem papéis importantes na sociedade as que “conseguem” parir. Geralmente, essa pressão é feminina, mesmo, o que parece ser uma certa crueldade entre as iguais. As pessoas podem pensar que estou exagerando por muitos motivos, mas peço a reflexão: é natural que pessoas diferentes, com intimidades diversas contigo, te perguntem todos os dias sobre tua reprodução e suscitem argumentos biológicos para opinarem em tua vida? Se tu pensas que sim, pode trocar de texto, que o meu não vai contribuir com esse argumento.

De toda a sorte, descobri que tenho respondido o que há de pior, porque causa certo estranhamento nas pessoas, mesmo.
— Quando tu vai ter filhos?
— Não sei.
— Mas tu quer ter, né?
— Não sei.

Passei dos 30 anos e não tenho o direito de não saber. Quando eu dizia “SIM”, ok, sou uma mulher aceita, sou maternal e tal, tudo normal. Quando eu dizia “NÃO”, causava algum desconforto, mas todos tinham algum bom argumento: “Ah, já sei. É porque tu trabalha com criança e já passa tempo demais cuidado das crianças dos outros…” E eu fazia cara de “Âhn?”

Nessas de tentar ser mais honesta comigo, comecei a responder a verdade, que não sabia, que não me sentia responsável o suficiente para decidir e que não tinha uma necessidade biológica e psicológica por passar por uma gestação (a verdade é que tenho certo medo, até). As pessoas já têm filhos demais, já erram demais (esse assunto é para outro post) e não sei se quero seguir o mesmo caminho, embora cada caminho seja único, seja particular. Bem, não saber sobre a maternidade parece pior, porque parece que desdenho essa “maravilha tão divina e fantástica” na vida das mulheres, parece que não sei que há tantas tentando, sofrendo e não conseguindo. Sei que as pessoas não se arrependem de ter filhos, mas sei que muitas os têm em momentos equivocados de suas vidas. Então, me dou o direito de não saber se quero filhos, apesar de ter 33 anos e a “idade pesar”, como tanto me falam. Se um dia decidir ter filhos e o corpo não permitir, posso adotar e meu desejo maternal vai ser realizado no momento certo. Ou se decidir não ter filhos, posso levar uma vida com menos rotina do que uma criança exige. Posso também decidir ter filho num ímpeto e carregar um rebento até o fim do ano. Mas não respondo hoje, que não sei realmente o que quero.

Aos homens, o direito à paternidade também é dado. Mais ou menos. Ninguém pergunta quando o homem — solteiro ou não — quer ter filhos. Se ser pai solteiro também é possível, por que poucos realizam? Por que poucos são encorajados? Por que a procriação é responsabilidade feminina — assim como o casamento? O Ricky Martin e o Cristiano Ronaldo queriam filhos oriundos de sua genética. Os dois contrataram barriga de aluguel e, por isso, foram rotulados de homossexuais (como se ser gay fosse defeito e/ou fosse condição para a “maternidade/paternidade”). Ricky Martin é gay e Cristiano Ronaldo, parece (não sei sobre sua vida afetiva, na verdade), não é, embora isso não importe. Importa que os dois se empoderaram (eita palavra da moda!) e decidiram eles mesmos sobre a paternidade, como tem de ser, como conquistada pela revolução sexual.

Aos que me perguntam sobre minha vontade de ter filhos, podem continuar perguntando. A pergunta não é ofensiva, nem me faz mal. Não acho que ninguém queira julgar as outras através dessa pergunta. O contexto, os implícitos e as imposições de papéis que a pergunta suscita, sim, esses acho que não fazem mal a mim, mas fazem mal à condição feminina. Sei que para muitos é difícil que alguém da minha idade não saiba sobre sua própria reprodução, mas não saber é o que tenho de mais honesto para responder.

Não vou responder a essa pergunta [sobre ter filhos estar entre as suas prioridades]. Não estou furiosa por terem feito essa pergunta, mas já disse diversas vezes: duvido que alguém faça esse tipo de pergunta a um homem.” (Zooey Deschanel)

Esse texto foi inspirado em alguns outros textos:

Felizes sem filhos

Não ter filhos por opção

10 coisas que toda mulher sem filhos já ouviu” (e é tudo real!)

Autor:

Dinda, tia e "sora". Uma mulher ordinariamente comum, que tem qualidades simples e defeitos reles.

2 opiniões sobre “365 perguntas

  1. Nina, acho a dúvida muito legítima e navego contigo nesta questão. Concordo que, se “passar da hora”, adotar é provavelmente a melhor saída.

    Sem dúvida alguma, nossa sociedade atribui pesos diferentes para maternidade e paternidade. Não sei dar uma boa sugestão neste caso. Talvez, a melhor saída seja responder qualquer coisa (“sim”, “nao”, “ano que vem”) para quem não se tem intimidade e deixar a dúvida a ser debatida em espaço privativo.

  2. Nos perguntam isso de veeeeeeeeez em quando e já fico de saco cheio, nem imagino como é ter que responder a essa pergunta todo dia… A gente responde na lata “não queremos ter filhos. não queremos colocar uma vida inocente neste mundo tão escroto” e a conversa meio que acaba por aí (quiçá por que as pessoas ficam chocadas, não tinham pensado por esse lado?). Às vezes alguém ainda insiste: “mas o filho é a alegria da casa” e eu respondo “agora, ajudar a criar você não vai, né?” ou então argumentam: “é bom ter um filho para dar continuação à sua linhagem”, ao que eu respondo “cara, nunca ouvi nada mais egoísta em toda a minha vida”, essas coisas.

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