O tempo perdido

O percurso da minha casa até o Campus do Vale é uma verdadeira viagem. Moro no Bom Fim e passo 45 minutos no ônibus da Linha Universitária, como boa parte dos meus colegas. O que difere minha percepção dessa viagem das outras tantas percepções, de outras tantas pessoas, é minha indignação em relação ao tempo perdido no ônibus. E, assim que eu entro, eu começo a perder tempo pensando no tempo perdido dentro do ônibus.

A volta não é diferente. Entro no ônibus já pensando na finitude do tempo, continuando o pensamento que se processava na ida ao Campus do Vale.

Na volta da primeira sexta-feira de aula, entrei em um “Campus Ipiranga”, fugindo do habitual ônibus com ar-condicionado. Isso já era mais uma reclamação para internalizar: além da perda de tempo, a falta de comodidade. Seguindo pela Avenida Bento Gonçalves, eu intercalava minhas reclamações internas com a preocupação em relação à chuva e à aula que eu daria a tarde.

Segui a Ipiranga voltando ao meu pensamento sobre a perda de tempo. Penso muito em como passo o tempo dormindo ou dentro de um ônibus, e entendo que isso não é justo, afinal é um tempo em que eu não produzo, nem me divirto. Ainda, passando pela Moda Casa, eu continuava mentalmente reclamando da falta de tempo, independente das razões.

Assim, nessa perda de tempo, refletindo sobre o tempo escasso, já perto do Planetário, encontro uma garça no meio do Arroio Dilúvio. Eu vi a garça e, cacofonias à parte, achei uma graça. A garça estava, imagino, pescando seus peixes para comer. Mas isso é suposição, pois naquele momento me dei conta de que eu estava com muita fome e já era hora do almoço.

E dimensionei essa imagem – a da garça – sobreposta ao Arroio Dilúvio. A garça tão altiva, tão elegante, tentado pegar sua comida naquele Arroio absolutamente poluído. Nesse momento, o pensamento da perda de tempo sumiu, dando lugar a outro. A garça, então, na sua estética poética, rompeu a grosseria do Dilúvio e, de frações de segundo, fez com que eu ganhasse esse momento dentro do ônibus.

Parece bobo pensar sobre a beleza de uma garça ferindo a feiúra do Dilúvio. Mas observar as pequenas coisas que podem nos surpreender é um desafio constante. A garça deu a graça do inesperado neste meu dia, trazendo a delicadeza do irrisório para a violência do lugar-comum.

Continuei seguindo até chegar o momento de descer. E depois do corte que a garça deu à minha rotina, me recompus. Voltei a pensar na finitude do tempo. Mas pelo menos, sem tantas reclamações internas. Mesmo vendo o tempo passar, já posso assistir a muitas singelezas que a sorte me dá.

*** Esse texto foi escrito em 2003, para uma cadeira de Leitura e Produção Textual. Estou guardando online os textos que me sobraram, pois perdi quase todos os que fiz. Há coisas engraçadinhas e outras muito ruins. Mas era o meu primeiro semestre na UFRGS.

Autor:

Dinda, tia e "sora". Uma mulher ordinariamente comum, que tem qualidades simples e defeitos reles.

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